sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O CAFÉ E "SEU" CLETO BRANDÃO –



O centro de irradiação das opiniões da cidade concentrava-se no CAFÉ DE CLETO, local onde a “rapaziada” dos vinte aos oitenta anos, jogava sinuca e bilhar, fazia uma fezinha no Pif-Paf, no pôquer ou na sueca e entre uma coisa e outra, sentava-se na calçada para apreciar o movimento da cidade.
O “café” estava estrategicamente plantado na esquina de uma encruzilhada
 formada pelas ruas Pedro Correia (hoje Heráclio Vilar) e São José (hoje Manoel Varela). Para se ir às usinas – as maiores empregadoras da cidade – à estação, ao posto de saúde, ao cinema, ao dentista, ao “Centro Esportivo e Cultural”, à prefeitura ou à igreja, tinha-se que passar em frente ao estabelecimento.
Logo, quem se desse ao “cansativo” trabalho de ficar sentado numa das cadeiras Gerdau na calçada do café, apenas mantendo os olhos abertos, sabia de toda movimentação da cidade. E o que não ficasse muito claro era objeto de uma interpretação científica, em que os relatores dos fatos, valendo-se do método indutivo-dedutivo disseminado pelos filmes de Charlie Chan, o detetive chinês, chegavam logo a uma conclusão satisfatória.
Na verdade, ali se formavam os precursores dos “paparazzi” (que ao invés das máquinas registravam as cenas com os próprios olhos de retinas fotográficas), dos colunistas de fofocas e dos analistas de informações. Mais uma vez o mundo se inclinava ante Ceará-Mirim, pioneira nas artes malicias & maquinações engendradas pela inteligência para socorrer a necessidade. 
O Café de Cleto era ao mesmo tempo o “Grande Ponto”, o Natal Clube, e o “Diário de Natal” de Ceará-Mirim. Dali partiam as notícias que no dia seguinte fariam a delícia da cidade. As análises políticas, os comentários econômicos sobre as moedas correntes da cidade – a cana, o açúcar e a rapadura; os palpites para o jogo do bicho e as cotações da bolsa de cereais, do gado de corte e do cavalo.
O notável estabelecimento era dividido, hipoteticamente, em três departamentos: o sinuca, o bilhar com o serviço de bar sem bebidas alcoólicas, localizado na dependência principal do prédio; a casa de jogo de baralho, em pequena construção anexa ao prédio principal; o posto de observação com a central de informações funcionava na calçada e tinha o maior número de colaboradores.
A direção geral era aparentemente exercida por Cleto Formiga Brandão, um homem boníssimo que, exatamente pela bondade, não dirigia nada, exceto a parte econômica. O complexo sistema de jogo e comunicação tinha vida própria e nada de regras. Cada um se exercia e fazia a sua parte. “Seu” Cleto, pela autoridade moral, sendo uma figura humana estimada por todos, fazia de conta que mandava e orientava.
De fato, pela sua credibilidade ele era apenas uma espécie de fiador, de avalista. A posição de tolerância que a cidade adotava em certos, digamos, exageros, se dava em consideração a “seu” Cleto, que tinha a meninada sob sua proteção, mais pela fidelidade e constância ao seu negócio, que pela concordância à prática da informação. E por achar que a produção de notícias não prejudicava a ninguém, era uma brincadeira inofensiva. 
Com a visão crítica e amadurecida que tenho hoje, elejo o estabelecimento como um dos mais pitorescos centros de tradição do município, comparável, por exemplo, à estação, ao mercado público, ao “centro” – clube social – e seus congêneres, o Náutico e o Ipiranga, ao “Olheiro”...
Por entender assim, registro e resgato a memória dos que fizeram do Café um lugar de tanta descontração e por que não dizer, de bom humor e alegria, nomeando-os. Os participantes do jogo de baralho (década de cinqüenta): Ari e Murilo Pacheco, Dr. Arino Barreto, coronel Manoel Pinto, João Neto, Vicente Barbosa (pai do ilustre Edgar Barbosa), Waldemar de Sá, Antonio Basílio Ribeiro Dantas, Abel Pereira, Manoel Sobral, Almir Varela, Djalma Correia, Benildes Cavalcanti, entre outros.
O dono do Café, CLETO BRANDÃO, um baiano que bebeu da água do lugar e nunca mais saiu de lá. Inteligente, autodidata pós graduado na escola da vida, conhecia como poucos os ofícios da agricultura e da pecuária. Fora formado para observar a retidão do caráter, a honestidade como regra de vida, não apenas um adorno para as aparências. Era um homem espirituoso e uma companhia agradável. Ninguém o via triste ou queixoso. 
Um homem devotado à sua família, sua verdadeira paixão. Num plano inferior, mas também outra razão de alegria, era a sua fazenda, denominada São José mas conhecida como “Comum”, adquirida do cunhado Epitácio Andrade.
Pai de sete filhos, Lucinha (falecida), Gilberto, Heloísa, Zé, Gracinha, Licinha e Tota, marido de Margarida, filho de um dos mais famosos médicos e boêmios da cidade, o baiano-mor Oscar de Castilho Brandão e da sergipana Isaura Formiga, que vieram com a família aquele paraíso. 
Tenho estreita ligação com a família. Gilberto foi meu colega de internato no colégio Marista. Heloisa é minha colega, competente profissional de direito e amiga de infância. O casal Gracinha e Célio foram meus padrinhos de casamento Licinha, artista plástica reconhecida nacionalmente. Lucinha, a mais velha, fazia parte de outra geração e se casou muito nova, não tivemos um relacionamento mais estreito
Povo bom, trabalhador, gente honesta, confiável e inteligente.
Joguei sinuca com Zé Brandão, que era um craque e Tota, ainda menino, já era uma revelação.
“Seu” Cleto era muito estimado porque tratava a todos como se fosse parte de sua família, principalmente os que trabalhavam para ele. Não era do tipo freqüentador de festas, mas do tipo trabalho-casa-trabalho. Exaltado no seu amor por Ceará-Mirim, criticava duramente aqueles que “fugiam” da cidade e iam residir em outros lugares.
Um dia, Deus o convocou para missões mais importantes. 
Com ele se foi um estilo e um modelo. Seu Cleto é daquelas criaturas produzidas numa forja bem antiga, utilizada para formar homens do seu tempo cuja credibilidade dependia de um atributo que hoje não faz mais nenhuma diferença, mas naquela época era indispensável: O CARÁTER.
Só um portador dessa credencial poderia merecer tanta consideração dos seus conterrâneos adotivos, ao ponto de fazê-los absolver os pecadilhos da rapaziada que vivia sob sua proteção.
Se não deixou um patrimônio material compensador, os seus familiares se tornaram herdeiros de uma fortuna hoje pouco encontradiça: O legado de um homem de bem. 

PEDRO SIMÕES (Pedrinho de doutor Percílio, que tem saudosa memória)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

CASA GRANDE DO GUAPORÉ



Artigo do Acadêmico JOSÉ DE ANCHIETA CAVALCANTI (Cadeira número 11), publicado em “O GALO – Jornal Cultural”, de outubro de 2002 e que levamos até vocês, na íntegra.
Encravada em uma protuberância de um terreno que se elevava em frente à encosta de um monte onde se situa a cidade de Ceará-Mirim em uma distância aproximada de dois quilômetros ergue-se ainda majestosa a Casa Grande do Guaporé diante de um imenso mundo verde entrecortado do límpido “rio azul” e acercada de árvores realmente colossais repleta de vasta folhagem, dando ao ambiente clima verdadeiramente paradisíaco.
O fidalgo Dr. Vicente Inácio Pereira era seu proprietário e, ali, realizaram-se acontecimentos da mais alta importância para a sociedade de Ceará-Mirim.
A Casa Grande do Guaporé, possuidora de amplas salas e corredores, prestava-se, maravilhosamente, para tertúlias e saraus, os quais com certa constância eram ali realizados.
Minha falecida sogra Maria Nazaré Antunes Furtado em conversas familiares falou-me várias vezes de tertúlias ali realizadas, assim como dos saraus com a participação da exímia pianista Dona Augusta Pereira, cujas valsas inesquecíveis interpretadas ao piano enchiam o ambiente das mais ternas melodias.
Que passado glorioso o do velho “Guaporé”!
Além das tertúlias familiares onde eram analisados os mais modernos textos da literatura da época houve um acontecimento da maior importância para aquela casa de engenho que foi a recepção feita a D. José, bispo com sede em Recife, mas que supervisionava as paróquias da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
A Casa do Guaporé recebeu com as mais honrosas pompas aquele prelado, quando de sua visita a cidade de Ceará-Mirim, promovendo um lauto almoço para a comitiva visitante chefiada pelo sr. Bispo D. José. Ao almoço estiveram presentes a Exma. Sra. Baronesa de Ceará-Mirim e a Exma. Sra. Dona Isabel, esposa do Dr. Vicente Inácio Pereira e filha da Baronesa.
Comissão de senhoras de fina sociedade local recepcionou o príncipe da Igreja com chuva de pétalas de rosas em meio à beleza do jardim florido sob o espocar de fogos de artifício e ao som da banda de música municipal.
Como que a espreitar toda aquela movimentação, dois galgos de louça branca, quais sentinelas, espreitavam tudo em silêncio.
A Casa Grande do Guaporé viveu, realmente, seus momentos de glória e de fausto, em um período glorioso onde predominou a aristocracia rural.
Porém toda glória tem seu fim e, esse fim vai muito bem retratado nessa frade de Dona Maria Madalena Antunes Pereira:
“Anos depois, entrei pela primeira vez na casa do Guaporé.
Nada mais existia do fausto antigo.
As flores do jardim murcharam como os que lá habitaram.
Apenas os galgos ainda conservavam na fisionomia a ilusão de estar guardando uma riqueza que passou...”.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

EM DEFESA DOS ANIMAIS - PEDRO SIMÕES NETO


"Estou ao lado dos que lutam pela defesa dos animais e da natureza.
Mas, como sempre faço, pauto a minha atuação pelo equilíbrio, sem exageros, nem fanatismos. Meu pai me dizia que o equilíbrio estava no meio e o que ofendia a saúde física e mental era o abuso, nunca o uso.
Amo os animais, especialmente os cachorros, os pássaros, as lagartixas (não tenho explicação para esta última afeição) e os vegetais, em particular as flores. Até onde posso intervir, não permito nenhum saque à natureza. Respeito as rocambolescas investidas do Green Peace em favor das baleias e contra a matança dos animais em geral, das Ongs que recolhem animais abandonados, cuidam das espécies em extinção e montam casas de recuperação para tratar dos bichos feridos. Dedico sincera admiração por aqueles que chegam às lágrimas diante de cenários dramáticos de extinção em massa de algumas espécies e dos que põem em risco a própria vida na defesa desses ideais.
Até concordo com a destinação das reservas ambientais nas áreas potencialmente dedicadas à agricultura e, especialmente, à agricultura de subsistência, embora acredite que o planeta é o habitat do ser humano e que, à parte o exagero ou o abuso, só cumprirá essa função na medida em que é sua serventia.
Afinal, em última análise, não é somente a consciência preservacionista ou o instinto de sobrevivência que nos impele à militância ecológica, é o compromisso que temos com os nossos descendentes de instituir o legado de um mundo defeso do caos.
Mas, creio, no recôndito da minha consciência, que a espécie mais ameaçada é a humana. Porque, desgraçadamente, somos antropófagos. No topo da cadeia alimentar, entretanto, somos dizimados pelos semelhantes. Entredevoramo-nos. Por isso, questiono-me porque não salvamos a espécie sujeita à nossa própria sanha? Precisa de alguma justificativa moral mais vigorosa que a prevenção ao extermínio patrocinado por nós mesmos?
Então? Por que não recolhemos as crianças abandonadas, atiradas nas ruas à própria sorte, porque não alimentamos os que vão morrer de fome porque estão abaixo da linha da pobreza, cuidamos dos que vão a óbito porque não têm assistência médica ou vivem ao relento, sem um teto para morar, os desempregados que morrem de vergonha pela dignidade que lhes foi negada...será que é mais difícil lutar pelos semelhantes?
É possível que haja certa dificuldade em ampará-los, porque, diferentemente dos animais, os seres dessa espécie pensam, reagem, emitem valores às vezes não condizentes com os nossos, ou porque são independentes e valem-se do seu próprio arbítrio. Ao invés, os animais são tão submissos na sua irracionalidade, tão devotados a nós pela sua fidelidade incondicional, tão subservientes aos nossos humores... Já houve quem me mandasse um PPS amostrando as vantagens de se adotar um cãozinho ao invés de decidir-se pelo casamento, exatamente pela máxima sujeição do animal em contraposição à rebeldia das mulheres.
Devemos dotar-nos de uma consciência humanística, e não somente a ecológica. Aprendendo a conhecer, respeitar e conviver com as diferenças existentes entre nós. Exercitar a tolerância e um sincero sentimento de fraternidade. Não temer ficar em “off” em relação aos modismos. É..., porque há quem pense que o humanismo é coisa do passado, é criação ideal dos pensadores medievais, coisa da igreja do Betinho e do Boff, remodelada do Jacques Maritain... uma doença do “esquerdismo” que teima em sobreviver ao maremoto neo-liberal.
Vamos resistir a essas (perdoem-me a expressão) idiossincrasias porque a proposta humanística é boa e tem tudo a ver com a febre salvacionista do planeta defendida pelos ambientalistas.
Comecemos pela adoção de uma nova vertente na temática dos direitos humanos - o estatuto psicossocial das vítimas, a consideração de uma vitimologia, tal como fazemos com os animais, dando precedência às vítimas em confronto com os seus predadores. Por que estar sempre atento à defesa dos direitos dos agressores, sem qualquer consideração aos direitos das vítimas?
Sejam quais forem os transgressores - bandidos, policiais, maridos que agridem as esposas, pais que maltratam e matam os filhos - eles escolheram o seu lado no contexto sócio-humanitário, exatamente à margem da sociedade, e por isso são propriamente denominados marginais. Reconhecê-los como sujeitos de direitos é uma coisa, outra é elegê-los como se fossem eles os agredidos, negligenciando ou subalternizando as verdadeiras vítimas.
Mantendo o foco e guardando as proporções, confundir os extremos seria o mesmo que premiar aquele que executa um animal de estimação, ou o submete a maus tratos, ou o abandona.
(Bem a propósito, só para esclarecer, evitando que se cometa equívocos, o dicionário eletrônico Houaiss, no verbete “vítima”, define-a como sendo: “pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra”, ou, “pessoa que é sujeita a opressão, maus-tratos, arbitrariedades”.)
Perdoem-me os sociólogos, antropólogos, cientistas sociais e economistas, mas cansei-me da tese que nos coloca permanentemente em estado de culpa - aquela que denuncia a sociedade como responsável pela gênese das transgressões. Seria então a injustiça social a criadora dos Frankensteins. Mas, meu Deus do céu, onde há justiça social neste planeta, e se houver um simulacro desse modelo, digam-me se nesse paraíso a criminalidade é inexistente?
Cansei-me também daquela desculpa amarela, que nos é conveniente, segundo a qual cabe aos governos cuidar dos necessitados. Bullshit. Nós somos o governo. Nós somos responsáveis pela tessitura humana semelhante à nossa. Então, façamos a nossa parte, como os defensores da ecologia que não aguardam e não requisitam os governos.
O ser humano é predador por natureza. Foi o processo civilizatório que reprimiu esse instinto, a partir do despertar de um procedimento racional. Mas, dentro de nós mesmos, habita um animal que, feito certas doenças, mantém-se em estado latente, aguardando um momento para se manifestar.
Vamos agir com os humanos como o fazemos em relação aos animais. Avançando, afoitos, contra os predadores, agindo sem preconceitos.
Alguém já discriminou um animal por sua cor – branca, preta, amarela, parda? Por ser macho ou fêmea?
Observe-se que a legislação ambiental é mais severa com os detratores do meio-ambiente que a ordenação criminal com os homicidas, seqüestradores, estupradores, pedófilos e traficantes de drogas.
Essa constatação trouxe-me à memória um episódio ocorrido em pleno Estado Novo. Quando Luiz Carlos Prestes amargava as mais cruéis torturas, confinado a um dos porões da ditadura, o advogado Sobral Pinto, sem alternativas para a defesa do seu cliente, por verificar que os seus pedidos de habeas corpus de nada adiantavam, com a suspensão do Estado de Direito, em desespero, decidiu invocar a Lei de Proteção aos Animais para preservar a incolumidade física do seu maltratado constituinte.
Vamos “adotar” as crianças sem lar, famintas, desamparadas, dedicadas aprendizes da escola do vício e do crime; apoiar o assistencialismo, sim! Por que deixar de dar um pedaço de pão, um copo d´água ou a ajuda financeira para a compra de um remédio aos esmoleres que tanto se curvam à humilhação da mendicância para sobreviverem? Será que aqueles que são implacáveis com os pedintes, chamando-os de vagabundos ou lhes acenando, por pura provocação um serviço doméstico que não tem a intenção de oferecer, fazem o mesmo com os animais abandonados, negam comida e socorro aos gatinhos e cachorros desgarrados, aos peixinhos do aquário?
Que tese “desenvolvimentista” pode prosperar às custas da inanição, e muitas vezes da morte dos necessitados que buscam um socorro imediato para a sua emergência? E, se a morte é anunciada, como a do personagem de Garcia Márquez, por inevitável fatalidade, argumento usado como desculpa útil para os que entendem a inutilidade do apoio, então que ao menos seja adiada. Um dia a mais fará muita diferença para quem não quer morrer.
Recorro sempre a um episódio relatado por Helena, mulher do notável pensador humanista e escritor grego (Cretense) Nikos Kazantzakis, que, em fase terminal de uma leucemia agressiva e impiedosa, teria dito que gostaria de se postar diante de uma imponente catedral para poder esmolar dos transeuntes e fiéis, um minuto de suas vidas, para que tivesse tempo suficiente para concluir a sua obra.
Pedro Simões (Professor de Direito aposentado. Advogado. Escritor. Cristão e Humanista, principalmente)"


Esta foto é da sua cadela Dara, uma akita que morreu no mesmo dia em que ele partiu, a 01/02/2013.