sábado, 30 de abril de 2011

GARRAFINHAS DE AREIA COLORIDA

ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Presidente do Instituto Norte-Riograndense de Genealogia-INRG, membro do IHGRN ) www.ormuzsimonetti@yahoo.com.br

AINDA SOBRE AS GARRAFINHAS DE AREIA COLORIDA

Da última vez que estive na residência do poeta Deífilo Gurgel, entre uma conversa e outra, disse-lhe que estava fazendo uma pesquisa, para escrever um artigo sobre a origem das garrafinhas de areia colorida. Na ocasião ele lembrou-se haver lido uma plaqueta feita por Veríssimo de Melo, que tratava do assunto e fazia referência à praia de Tibau do Norte.

Procurei então o meu amigo e contemporâneo do velho Atheneu Norte-Riograndense, Fernando de Melo, filho de Veríssimo. Por sorte depois de algumas buscas ele encontrou e me enviou a tal plaqueta, intitulada GARRAFINHAS DE AREIA DE TIBAU. Essa pesquisa foi feito em 1962 e publicado pela Coleção Mossoroense em 1983, com desenhos e capa de Newton Navarro. Transcrevo na íntegra as anotações, para conhecimento dos leitores,.

“O presente trabalho sobre as areias de Tibau foi feito pelo Diretor do Departamento de Cultura Popular do Instituto de Antropologia da Universidade do Rio Grande do Norte, Prof. VERÍSSIMO DE MELO. Atendendo solicitação do Sr. LUIZ G.M. Bezerra, presidente da Federação Norte-Riograndense de Pesca Amadora, vai agora publicar especialmente para acompanhar as amostras das garrafas de areia que foram enviadas, como lembrança de nossa terra, ao IV Congresso Sul-Americano de Pesca, em Asunción, Paraguái.”

Relata o professor Veríssimo: “O aproveitamento de vasilhame com enchimento de objetos ou cobertura externa com palha ou fibra, com finalidade de ornamentação doméstica, é processo conhecido entre as manifestações da Arte Popular brasileira.

Da Bahia, conhecemos as garrafas com pequenos veleiros metidos lá dentro. Da Paraíba, vidros com santos. Do Pará, lindas garrafas cobertas com fibras de várias cores. Do Rio Grande do Norte, talvez a mais original de todas as nossas atividades artísticas populares seja o enchimento de garrafinhas com areias coloridas de Tibau.
Verdadeiras obras de arte, pelos seus desenhos, distribuição e variedades de cores, essas garrafinhas de areia são muito estimadas como elementos decorativos. Vendidas nos mercados e feiras do Estado, representam curiosidade sui-generis para visitantes ou turistas, que nunca as dispensam como lembrança de nossa terra.

Praia de pesca e veraneio, pertencente hoje ao município de Grossos, extremo-norte do nosso Estado, vizinha do Ceará, Tibau é também recanto pitoresco preferido pelos veranistas do próspero município de Mossoró.
Lá estivemos em julho de 1962, a serviço do Instituto de Antropologia da Universidade do Rio Grande do Norte, tendo oportunidade de observar e conversar com exímia fabricante dessas garrafinhas. Colaborou conosco o Dr. Tércio Miranda Rosado, nosso cicerone e que nos forneceu dados mais amplos sobre o assunto, através de questionário e contacto direto com moradores daquela praia.

AS AREIAS

As areias são retiradas das dunas, que estão bem à vista, diante da praia. Algumas tonalidades são retiradas das camadas superpostas, no subsolo. Sua variedade de cores é impressionante: vinte e cinco tonalidades podem ser colhidas facilmente. Segundo nos informou Josefina Fonseca, são as seguintes as cores de areia de Tibau. Amarelo, Marrom, Preto, Prateado, Cinza, Cinza-Claro, Cinza-Escuro, Encarnado, Encarnado-Escuro, Encarnadão, Areia, Róseo, Verde-Claro, Verde-Escuro, Laranja, Roxo, Roxo-Clara, Roxo-Escuro, Amarelo-Claro, Amarelo-Queimado, Creme, Grená, Branco, Branco-Goma e Cáqui.

Não conhecemos outras aplicações da natureza artística ou industrial das areias de Tibau, a não ser o que nos informou o Dr. Tércio Miranda Rosado: Seu tio Dr. Vingt-Um Rosado usou duas variedades de cores dessas areias na construção de um cinema, em Mossoró. Por outro lado, soubemos que norte-americanos teriam declarado, a respeito das areias de Tibau, que uma das variedades seria semelhante às que foram encontradas na Barra do Ceará (Fortaleza) e Aracati, inflamáveis ao contato de um cigarro aceso.

UMA ARTESÃ

Josefina Fonseca, com quem conversamos, fabricante de garrafinhas de areia, é senhora de quarenta e poucos anos de idade. Aprendeu a técnica do enchimento, há trinta anos, com sua tia Belisa, e logo se aperfeiçoou. Informou-nos que outras pessoas de sua família e moradores da praia também se dedicam a mesma atividade, mas unicamente mulheres.
Mulata escura, Josefina é pessoa bastante cordial, tendo prontamente nos atendido, quando lhe pedimos para encher uma garrafinha em nossa presença.

A TÉCNICA

Josefina foi lá dentro de casa e trouxe vários pacotes de papel, contendo areia de várias cores. Sentou-se no chão, no terraço, pondo de lado uma garrafa vazia (tipo vinho branco), e um arame um pouco maior, talvez de uns quarenta centímetros de ponta a curva.

Inicialmente, apanhou um punhado de areia alaranjada, com a mão direita, despejou-o, lentamente, pelo gargalo da garrafa. Munida do arame, começou a fazer uma série de movimentos por dentro do vasilhame, em sentido circular. Após delinear o primeiro desenho, - um animal – colocou novo punhado de areia e repetiu o mesmo desenho, agora já noutra cor. Seguiram-se, então, nove cores ao todo, nesta ordem: Alaranjada, branca, preta, marrom, grená, cinzenta, roxo e róseo. Em menos de meia hora concluiu o seu trabalho, enchendo uma garrafa de litro, dividida em doze camadas de areia, com o mesmo desenho.

Os motivos artísticos que escolhe não são feitos arbitrariamente. São desenhos tradicionais, que aprendeu de Belisa. Por sua vez, esta já aprendeu de outras pessoas. Uns são mais fáceis de executar, outros mais difíceis. Os motivos que considera mais complicados são os que aparecem “peixinhos” ou “Passarinhos”.
Outro detalhe de técnica interessante é a distribuição das cores nas garrafas. Também não é feita à vontade. Obedece a um padrão tradicional: Cor clara, de início, e cor mais escura em seguida.

A propósito, o escritor cabo-verdeano Luiz Romano, que viveu mais de treze anos no Marrocos francês, tem apontado semelhanças dos desenhos e distribuições de cores entre as garrafinhas de Tibau e trabalho árabes, principalmente tecidos, colchas de lã, como teve ocasião de nos mostrar. Aliás, não só nessa atividade artística Luiz Romano tem encontrado paralelismo com traços culturais muçulmanos. Em muito outros aspectos da vida nordestina. Influência que teria sido trazida pelos portugueses, na colonização.

MULHER DE AREIA

Em meia hora, como vimos, Josefina enche uma garrafinha com areia de Tibau, artisticamente. Em média, confessou-nos que poderá preparar vinte garrafas por dia.
Em 1932, quando iniciou o aprendizado, cobrava por uma garrafa de areia cinco mil réis. Hoje, o preço normal é de cem cruzeiros por cada unidade. Entretanto, cobra cento e cinqüenta cruzeiros para encher certo tipo de garrafa de licor estrangeiro, em forma de mulher. É dos trabalhos mais interessantes de Josefina, pois a mulher de areia aparece com saia bordada, casaco de outra cor, rosto, olhos, cabelos, tudo colorido. É obra de arte e de paciência.

Também muito procuradas são as garrafas contendo nome de mulher ou expressões significativas, como “Lembrança de Tibau”, “Saudade”, etc.

UMA SUPERTIÇÃO

A perfeição do enchimento de garrafas em Tibau é de tal ordem que provocou, certa vez, atitude estranha de um cidadão: Para certificar-se de que era mesmo areia e não tinta comprou uma garrafa e espatifou-a no chão. Convenceu-se, então. Todavia, - informou-nos Josefina – alguns fabricantes, ultimamente, tem tinturado duas tonalidades de areia, para obter uma terceira. A prática tem provocado protesto de admiradores da manifestação artística. Consideram estas falsificadas.
Curioso! Se toda atividade profissional tem suas superstições, é natural também que o fabrico das garrafinhas tenha a sua: E dizem, então, que a areia de Tibau, engarrafada, da azar! Mas, isso é folclore”.

Diante desse documento do Professor Veríssimo, podemos concluir que as “Garrafinhas de Areia Colorida” surgiram em locais e épocas diferentes, nos vizinhos e irmãos estados do Rio Grande do Norte e Ceará. Porém, temos em comum a existência dessas areias coloridas tanto na praia de Majorlância-CE como na Praia de Tibau do Norte-RN, o que foi determinante para a iniciação dessa arte.