segunda-feira, 1 de agosto de 2011

LUIZ DA CÂMARA CASCUDO

Aos 20 anos, em 1918, fez sua estréia nas páginas de A Imprensa, o jornal do seu pai. Foi o repórter que acompanhou Joca do Pará numa reportagem sobre as rondas da polícia montada vigiando a noite da cidade. Aos 21,fez sua estréia como escritor ao lançar seu primeiro livro - Alma Patrícia, há noventa anos. E há 25 anos fechou seus olhos para sempre, aos oitenta e seis anos e mais de uma centena de livros. Genial e humilde. Pobre e feliz.

Filho único de Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Ana Maria da Câmara Cascudo, ele comerciante e coronel da Guarda Nacional, ela dos afazeres do-mésticos, nasceu Luís da Câmara Cascudo em Natal, a 30 de dezembro de 1898, onde viveu 88 anos até seu coração parar na tarde do dia 30 de julho de 1986.

Na água do primeiro banho, a mãe despejou um cálice de vinho do Porto para ter saúde e o pai temperou com um patacão do Império, para ganhar fortuna. O padre João Maria, o santo da cidade, batizou-lhe na Igreja do Bom Jesus Dores, na Ribeira, ali onde nasceu, anunciando seu nome em latim: Ludovi-cus! E a poetisa Auta de Souza, amiga de sua mãe, embalou nos braços tépidos, o choro forte do menino-homem.

Como o sobrevivente de quatro irmãos, teve a infância guardada entre cuidados com ama de companhia, professora particular e proibido do encanto das ruas. No verão, vivia os dias de calor na beira do mar, entre barcos e pescadores, e o inverno passava no sertão, ouvindo o aboio dos vaqueiros e o desafio de cantado¬. E assim sedimentou, entre espumas e espinhos, a sua cultura descobridora do homem brasileiro.

Desejou ser um nobre médico de província e chegou a cursar os primeiros anos Faculdade de Medicina da Bahia e no Rio de Janeiro. Mas terminou cumprindo destino de ser bacharel em Direito, na velha Faculdade de Direito do Recife ¬onde ainda ouviu o eco dos discursos de Joaquim Nabuco e Tobias Monteiro versos de Castro Alves horrorizados com a escravidão.

Sonhou ser jornalista, e foi. Seu pai, nessa época ainda um homem rico, instalou ¬o jornal A Imprensa para o filho. Nas suas páginas, o estudante que lia até a madrugada, passou a exercitar o gosto de escrever, mantendo a coluna Bric-à¬-Brac, na qual treinou seu olhar perscrutador observando costumes, hábitos e tradições de seu povo. Um repórter a registrar os quadrantes da vida comum.

O primeiro livro, Alma Patrícia, um olhar pioneiro sobre os poetas e prosado-res de sua cidade, sai dos prelos em 1921. Na véspera da Semana de Arte Moderna de 1922 que aconteceria, meses depois, em São Paulo. O movimento estético encontrou no jovem escritor natalense um dos precursores no Nordeste. O professor ¬de História que se revelara com as biografias do Marquês de Olinda e do Conde d'Eu, publicadas na Coleção Brasiliana, foi além dos feitos históricos. Voltou ¬seu olhar para o Brasil para ser um dos grandes fundadores do homem brasileiro¬, ao lado de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda

Leitor dos clássicos e das vanguardas dos anos vinte, não demorou a entrar sintonia com os modernistas. Colaborou nas suas revistas, recebeu Mário de Andrade em Natal, e começou a sua construção da cultura popular do seu povo. Ergueu as bases da etnologia, psicologia, antropologia e sociologia do homem brasileiro, vendo e ouvindo, anotando e estudando. Crenças e costumes, hábitos e tra¬dições, cantos e danças, jogos e técnicas, no lazer e no trabalho, na vida e na morte - tudo para conhecê-lo na sua riqueza, singularidade, mutações e permanências.

No final dos anos trinta, lança Vaqueiros e Cantadores e fixa seu nome como legenda nos estudos folclóricos que chamaria de Ciência do Povo. Funda a So¬ciedade Brasileira de Folclore; propõe uma teoria em tomo do conceito de Cultu¬ra Popular; ergue com erudição o corpus conceitual da Literatura Oral no Brasil e sistematiza sua classificação; e faz a sua longa viagem de estudos ao continen¬te africano, como um grande viajante do Século XX, para beber nas fontes ances¬trais o vinho arcaico do passado e escrever Made in África, restauração da arqueo¬logia cultural brasileira, cartografia indispensável à compreensão das nossas raízes que pareciam perdidas há cinco séculos. .

Autor de verdadeiros clássicos da cultura brasileira, como o Dicionário do Fol¬clore, Cultura e Civilização, História da Alimentação e História dos Nossos Ges¬tos; ensaísta insuperável da Jangada e da Rede de Dormir; etnólogo dos costumes e superstições; tradutor de Montaigne e Henry Koster; estudioso das lendas, da novelística popular, dos contos infantis, e observador dos medos e assombrações, a obra de Câmara Cascudo é um vasto continente a contracenar com um arquipé¬lago de ilhas temáticas nascidas de todos os seus olhares e saberes específicos ar¬ticulados entre si.

Com mais de uma centena de títulos. entre livros, traduções, opúsculos, e al¬guns milhares de artigos publicados no Brasil e em vários países, traduzido na Fran¬ça, Itália, Espanha e Japão, viveu como um descobrir, vendo e ouvindo, lendo e perguntando, anotando e escrevendo, sem nunca pensar em deixar a sua terra Natal, entre o rio, o mar e os morros, traços de sua própria fisionomia. Ainda nos anos trinta, o seu pai ficou pobre e o menino virou arrimo de família com a rica fortuna de um destino que faria de sua obra uma marca vitoriosa na história inte¬lectual do Brasil.

Uma vez, em 1960, foi convidado para reitor da Universidade Nacional de Brasília pelo próprio presidente Juscelino Kubitschek que veio a Natal visitá-lo. Não aceitou. Convidado para ensinar em várias universidades da América Latina, Europa e Estados Unidos, nunca aceitou. Quando se negou a lançar a sua candidatura à Academia Brasileira e Letras, Afrânio Peixoto, seu amigo, in¬conformado em não vê-lo imortal, biografou numa frase perfeita o traço mais determinante de sua personalidade de espírito e de gênio: Câmara Cascudo é um provinciano incurável.
Luis da Câmara Cascudo viveu e morreu na sua aldeia Genial e humilde. Pobre e feliz.

Vicente Serejo 31/07/2011