sábado, 11 de junho de 2011

COISAS DE NOSSA TERRA

DE VOLTA AO PASSADO III- VENDEDORES AMBULANTES

O cavaco-chinês é uma massa feita com farinha de trigo e açúcar, de sabor agradável e que se dissolve com facilidade na boca. Muito fino e quebradiço, o biscoito de formato arredondado, tem o tamanho de um prato, mais ou menos 20 centímetros. São transportados dentro de uma espécie de baú cilíndrico, feito de flandre ou alumínio, que o vendedor traz preso às costas atado por uma arreata de couro. Muito embora tendo o nome de chinês, a guloseima teve sua origem na Índia. É praxe dos vendedores de cavaco chinês percorrer vários quilômetros no desempenho do seu ofício. Partiam de fabriquetas que ficavam em bairros mais afastados, e caminhavam até os bairros da Cidade Alta, Tirol e Petrópolis, onde residia a maioria dos seus fregueses.




















O percurso era marcado pelo compasso do toque estridente do triangulo de ferro, característica desses profissionais. Tilingue, tilingue tingue, tilingue, tilingue tingue. Bastava ouvir esse toque que todos já sabiam quem vinha passando. A meninada que dispusesse de alguns trocados, não exitavam e logo aparecia nas portas ou janelas a gritar: cavaco! cavaco!

RAFAEL-VENDEDOR DE CAVACO CHINÊS - FOTO EM FRENTE A PGE

Atualmente os vendedores de cavaco chinês ainda podem ser encontrados nas ruas de Natal. O triangulo de ferro, o toque, o baú, tudo continua igual. Apenas a embalagem modificou. Agora são servidos acondicionados em um saco plástico, como infelizmente quase tudo que compramos hoje em dia, com 10 unidades, ao módico preço de R$ 1,00 (Um real).

























Havia também o vendedor de geléia de coco, um doce feito a base de açúcar mascavo, mocotó e pedaços de coco. A iguaria era muito apreciada por jovens e adultos, porém igualmente temido para os que se utilizavam de dentaduras postiças. Todo cuidado era pouco na hora de apreciar a guloseima, em virtude de sua consistência. Bastava um descuido na hora de mastigar e a “perereca” ficava agarrada do doce deixando o incauto cidadão em situação vexatória.



Outro personagem que deixou sua marca indelével na memória dos freqüentadores do Cine Rio Grande foi Mané Anão, um vendedor de confeito, como era chamado na época. Em seu tabuleiro havia uma diversidade de balas, drops Dulcora, torrão, buzi, chicletes Adams, pirulito, pastilha Garoto, chiclete de bola ping-pong, e outras bugigangas. Bem antes de iniciar as seções, lá vinha ele com o tabuleiro na cabeça, e andar gingado, peculiar dos que sofrem de nanismo. A mercadoria que ele trazia em consignação da Confeitaria Cirne, do Sr. Múcio Miranda, que ficava no Grande Ponto, onde ao final do dia retornava para guardar seu tabuleiro. Mané Anão era natural de Lajes-RN. Quando o conheci já era um homem de seus 40 anos. Todavia, sempre que não estava trabalhando gostava de tomar umas e outras e embriagava-se com facilidade.



Certa vez, junto com os motoristas da praça de carros de aluguel que ficava no canteiro central em frente à Praça Pio X, hoje a nova Catedral, tomou uma carraspana tão grande que desfaleceu. Seus amigos motoristas, que gostava de fazer gozação com o indefeso anão, lá pela madrugada, colocou Mané completamente despido dentro de um dos cestos de arame que ficava preso ao poste de ferro, onde se colocava o lixo varridos das ruas do centro.

Quando o dia amanheceu e os primeiros trabalhadores passavam pela Deodoro com destino aos seus locais de trabalhos, paravam para ver o “resultado” de uma noite de bebedeira. A cena era hilariante. O pobre anão dormia o sono dos inocentes, completamente despido dentro de um cesto de arame. A ressaca do inditoso vendedor durou quase um mês. Vencida a vergonha, retornou ao “gramado” e depois das pazes feita com os motoristas, tudo começou novamente como se nada tivesse acontecido.
























Vez por outra também freqüentava naquelas ruas, o comprador de garrafas. Para transportar sua carga, adotava a mesma técnica dos verdureiros sendo que utilizava apenas um grande balaio em cada lado da peça de madeira – calão-, e ao invés de varas, os balaios eram presos por quatro pedaços de cordas ou arames. Nesses balaios eram distribuídos os produtos que comprava, sempre procurando o equilíbrio do peso em cada um deles.

Com seus passos ritmados que acompanhava o movimento dos balaios e facilitava sua caminhada, anunciava com fala quase musical: “garrafeeeeeiro, compro litro, meio-litro, garrafa, jornal, revista, lata de óleo, quem tiver eu compro!”. E assim passava o dia inteiro carregando sua cruz, para no final da tarde depois de percorrer léguas tirana, revender tudo que tinha conseguido comprar. A carga, geralmente bastante pesada, obrigava-o a conduzi-la em seus cansados e maltratados ombros, até os bairros da Ribeira ou Rocas onde ficavam os depósitos dos compradores desse tipo de mercadorias. Havia também aqueles que utilizavam apenas um grande balaio que transportava na cabeça. Todo esse esforço lhe rendia apenas alguns míseros trocados que dia a dia amealhava para o sustento de sua família.
(Imagem ilustrativa)
















(Imagem ilustrativa)

Outro famoso personagem que habita minha memória foi o gazeteiro Cambraia. Apelido que adquiriu por ter os cabelos pixains e muito brancos.
Era um homem negro, de estatura elevada, e tinha um vozeirão que chamava a atenção quando anunciava: ô lêlê, ô lêlê, jorná de Natá, ô lêlê, ô lêlê, jorná de Natá. O jornal que anunciava era o Diário de Natal. Tinha um jeitão desconjuntado, e uma voz enrolada que dificultava entender o que dizia. Somente os que o conhecia sabiam o produto que estava vendendo.



Para estimular os fregueses anunciava manchetes que não existiam, causando risos e facilitando a venda. Lembro de certa vez ele passou anunciando aos gritos: Ô lêlê Jorná de Natá, a muié de Batazar engoliu um canhão. E assim, com essa cantiga desengonçada, caminhava pelas ruas sempre se dirigindo para o Grande Ponto, confluência das Ruas João Pessoa com a Princesa Izabel e a Av. Rio Branco, local onde se reunia a intelectualidade da época, seja na calçada do Natal Clube, ou da Farmácia Santa Lygia.

Hoje, ao lembrar aqueles heróicos vendedores ambulantes, minha alma se enche de melancólico. Formavam, sem dúvidas, uma verdadeira instituição de valentes brasileiros que apesar de terem tido poucas oportunidades em suas vidas, mas cada um deles desempenhava seu papel na sociedade com seus trejeitos, suas habilidades, estratégias de venda e principalmente nos dava lição de luta honesta pela sobrevivência. Como admirava esses homens e essas mulheres! Por muito tempo habitaram a minha imaginação. Dentre outros grandes brasileiros, tornaram-se meus verdadeiros heróis, a quem presto meu reconhecimento e minha homenagem.