quinta-feira, 17 de junho de 2010

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

Ormuz:

Muito bom o texto.
Melhor ainda o ser humano.
Que é humano sendo um peixinho.

Edgard
Natal/RN

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

Caro Ormuz, mais uma bela cronica sua. Aos poucos, você vem resgatando para a memoria dos antigos veranistas e residentes na Praia da Pipa, algo muito importante,ou seja, quem foram e o que fizeram antigas figuras como a do João Peixinho, que hoje lamentavelmente, devido ao modernismo não existem mais. Tanto a pesca como as embarcações mudaram.
Os peixes praticamente sumiram...e os barcos, hoje mais modernos, são maiores e funcionam na sua grande maioria, movidos a motor. Gostei da sua cronica...não fui veranista na Pipa, mas senti prazer em ler os seus relatos.
abraços

Felipe
Natal/RN

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

Caro amigo e querido Ormuz , a sua crônica escrita com tanta precisão, sensibilidade e riqueza de detalhes me emocionou tanto que tive dificuldade de terminar a leitura tantas foram as lagrimas que me chegaram aos olhos . Conheço João Peixinho e sua historia, com quem convivi quase diariamente, desde que comecei a veranear na Pipa , há mais de 50 anos.

Era ele quem todas as noites, nos últimos anos ia todas as noites conversar lá em casa, contar estórias de pescador, bem como as novidades da Praia. Sabia de tudo que ali se passava . Ficava até tarde conversando, Evilásio deitado numa rede verde e ele numa cadeira ali perto. Como o tempo é implacável!

Também como você, não tive coragem de visitá-lo no Hospital, sabendo que ele talvez não consiga voltar à Pipa, com vida, limito-me a rezar e pedir ao Criador que lhe dê forças para suportar o sofrimento e fé para aceitar a vontade de Deus. É lamentável e por coincidência, esta , como você bem frisou, é a sua última crônica do livro "A Praia da Pipa dos meus avós" Um abraço.
Dina Fagundes
Goianinha/RN

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS



Pipa, e seus personagens
João Peixinho, o pescador


João Severino Marinho nasceu na Praia da Pipa na década de 30,possivelmente em 1935, não soube informar com precisão. Como a maioria das crianças nascidas naquela época, começou a trabalhar ainda muito cedo. Com 10 anos de idade foi pela primeira vez, com seu tio Geraldo Martins, para uma pescaria em alto mar. Era um pequeno bote de nome Aderaldo de propriedade de Antônio Pequeno, “o velho”, que seu tio era mestre. Desse dia em diante, nunca mais parou. Pescou embarcado por mais de 35 anos.
No início, quando acompanhava seu tio nas pescarias, muito observador, procurou aprender tudo que o tornasse, futuramente, um bom profissional. Para isso sempre contou com a vasta experiência do tio, velho pescador daquelas águas e grande conhecedor dos seus segredos.

Com ele aprendeu a fazer um bom “impur”, como colocar corretamente a isca no anzol, a técnica utilizada para puxar um peixe de maior tamanho, os melhores locais de pesca e também os locais apropriados para a colocação de caçoeiras. O tio aproveitava as longas horas no mar pra lhe ensinar a função de cada peça do bote, o domínio das velas, a importância da escota – pequena vela que se coloca na frente do barco para ajudar na sua direção - etc. Ensinava ainda como localizar os melhores pesqueiros, usando para isso as “marcações de terra”, como são denominados os morros e as grandes árvores da mata, e principalmente a divisão e localização de áreas de pesca, curiosamente chamados de “mares”.

Na Pipa existem dez “mares” divididos e batizados pelos seus ancestrais. São localizados e identificados pelas marcações de terra que são chamadas de “assento” e “caminho”. O “assento” é determinado pelos morros que ficam ao Norte da Pipa, e o “caminho” pelas grandes árvores da Mata Atlântica, situadas por trás do povoado. A localização se dá no momento em que o pescador consegue avistar os dois pontos ao mesmo tempo.

O primeiro mar é chamado de Mar do Canto, e se localiza ao Sul da Pipa; depois vem o Mar das Aves; em seguida Cururu de Cima; Cururu do Meio; Cururu de Baixo; Testa da Volta; A volta; o Canto da Volta; Chiqueiro de Cima e finalmente Chiqueiro de Baixo, que fica ao Sul, mais ou menos em frente a Praia de Pirangi. Entre um mar e outro existem áreas com grandes profundidades que são chamadas de “bico de fundo” devido sua profundidade.

Aos 20 anos de idade, João Peixinho já era mestre de um barco de propriedade de José de Hemetério, com quem trabalhou por mais de 35 anos. Entre as tantas aventuras por ele vividas no período que pescou embarcado, conta que por volta dos anos 60, o bote que trabalhava havia sido vendido e o novo barco ainda se encontrava no estaleiro, em fase final de acabamento. Precisando ganhar o sustento da família, enquanto aguardava a conclusão do serviço no novo bote, passou a trabalhar em outro barco de propriedade do mestre Francisquinho.

Em uma noite chuvosa quando retornava da pescaria de vuador junto com um companheiro, durante uma tempestade, a força dos ventos rasgou o pano da vela e quebrou o mastro do bote. Sem ter como navegar, resolveram que a melhor opção seria afundiar, - ancorar o barco - pois estava a deriva e muito longe da terra. Pela manhã, certamente alguém viria em seu socorro, pois era o que normalmente acontecia quando alguém não retornava no horário previsto. Lá permaneceram durante toda a noite enfrentando intenso temporal. A maior preocupação, entretanto, era quanto aos navios, pois infelizmente estava ancorados em sua rota de navegação.
Como não podiam sinalizar devidamente a embarcação, uma vez que o mastro também havia quebrado, foram obrigados a se revezarem durante toda a madrugada, de maneira que sempre um deles permanecia no convés, atento a qualquer aproximação, pois na iminência de colisão, a única opção seria atirasse ao mar.

Ao amanhecer foram socorridos por um navio que passava ao largo. Era um navio mercante que navegava do porto de Macau, no Rio Grande do Norte, com destino aos portos do Recife e Bahia. Além dos porões lotados com sal, foram improvisados no convés dois grandes currais onde eram transportados jumentos e cabras. O Capitão lhe informou que as cabras seguiriam para a Bahia, enquanto que os jumentos seriam descarregados no porto de Recife e se destinavam aos abatedouros, especializados na produção de carne de charque, localizados no interior Estado.
Relatou aos pescadores que desde sua saída de Macau chovia muito forte e em vista disso já havia morrido vários animais. Explicou também que o perecimento dos animais não era causado por doença, e sim pelas precárias condições que estavam viajando. Foi então que o capitão informou que, há pouco tempo, havia morrido mais uma cabra e que seria atirada ao mar, como vinha acontecendo com todos os animais que não sobreviviam. Como eles estavam voltando para casa, ofereceu o animal para que pudesse aproveitá-lo, o que foi prontamente aceito por eles sem maiores delongas.

O barco havia sido rebocado por um tempo, quando avistam outro bote navegando em sua direção. Eram o mestre Francisquinho e seu companheiro Zé Inquim, que como João Peixinho havia previsto, notando a demora em seu retorno, já vinham em seu socorro.
O navio seguiu viagem e os pescadores retornaram a Pipa com o porão do barco cheio de peixes e mais uma cabra, presente do capitão. Esse inusitado presente terminou por transformar-se em objeto de grande polêmica: o dono do barco que por tradição e contrato, tem direito a metade de tudo que for pescado, quis estender seus direitos ao presente do capitão. Foi prontamente repudiado por João Peixinho, alegando que somente os peixes eram passivos de divisão. Não chegando a um entendimento com o patrão que insistia na divisão de tudo, resolveu deixar o emprego temporário, mas manteve-se firme em sua posição.

A vida inteira passada no mar, dota o pescador de muita experiência que é adquirida, no duro enfrentamento das mais adversas condições que encontram na luta pela sobrevivência. Para se tornar um mestre de banco como foi o caso de João Peixinho, é condição básica saber se orientar em alto mar, principalmente quando não fosse possível enxergar as “marcas de terra”. À noite, a orientação era feita pelos astros e estrelas. Durante o dia era a posição que os ventos ou mesmo as correntes marítimas, que lhe indicavam a direção a seguir.

João Peixinho pescou embarcado por vários anos até que tendo sofrido uma tentativa de assassinato, ficou com seqüelas que o impediu de continuar na atividade. Desde que se aposentou, sua área de pesca limita-se aos recifes de coral que ficam em frente a sua morada. Lá mostra toda sua experiência na pesca de pequenos peixes, com sua inseparável pindaúba. Ver-se habilidade também ao aprisionar cardumes de tainhas, com precisos arremessos de tarrafa e principalmente na destreza com que captura moréias e polvos que se escondem nas locas dos recifes de coral.

Durante essa entrevista me confidenciou com profunda tristeza que atualmente, esta cada vez mais difícil e escassa a pesca nos parrachos. Novamente o ser humano no afã de conseguir tudo na Lei do menor esforço, esta se utilizando nessas capturas, de uma técnica que reputamos no mínimo criminosa. Sem nenhum compromisso com a preservação do próprio ambiente em que vive, descobriu uma maneira de realizar esta captura utilizando apenas um recipiente tipo “sprei” contendo água sanitária. Esse produto é borrifado nas locas, onde se escondem esses animais, e no mesmo instante tudo que estiver naquele local, morre de imediato.

O mais cruel é que o ambiente atingido fica por muito tempo sem que nenhum ser vivo dele se aproxime. A ação do cloro contido na água sanitária é devastadora. É comum vermos várias pessoas utilizando essa técnica, quando as marés secam e os recifes se mostram em toda sua plenitude de beleza e esplendor. É preciso que as autoridades adotem alguma providência, antes que essa prática criminosa torne aquele ambiente, totalmente estéril.

No ritmo dos acontecimentos, corremos o risco de em pouco tempo, não podermos mais observar nas inúmeras piscinas naturais a explosão de vida marinha, com seus peixinhos coloridos, crustáceos e moluscos que enchem os olhos dos que por ali passeiam.
Hoje, o velho pescador se encontra em um leito do Hospital Walfredo Gurgel lutando por sua vida. Só que nesta luta, ele não pode se valer da experiência acumulada durante toda sua vida de “velho lobo do mar”. As armas ali utilizadas são outras. Até mesmo a medicina com toda sua evolução, está perdendo a luta para a doença devastadora.

Não tive coragem de visitá-lo. Pretendo lembrar-me d’ele andando vagarosamente em cima dos parrachos, a catar “siris mole” para fazer isca para sua pindaúba, ou procurando polvos e moréias, nas locas das piscinas naturais que se formam quando as águas se recolhem, deixando à mostra toda aquela beleza exuberante, que há poucas horas, estavam cobertas por uma das mais puras e cristalinas águas de toda a costa brasileira.

Pipa, maio 2010.