sexta-feira, 1 de julho de 2011

DE VOLTA AO PASSADO V

“OS RAPAZES ALEGRES”

Além dos desprotegidos, desamparados, e vendedores ambulantes, também fazem parte das minhas reminiscências os conhecidos “rapazes alegres” daquele tempo. Eram figuras diferentes que habitavam e conviviam em nossa aldeia, como qualquer outro cidadão, pois eram respeitados como tal. Identificados apenas por seus apelidos extravagantes, pois seus nomes verdadeiros permaneceram, no anonimato. Ainda me lembro de alguns: Rosa Negra, secretário doméstico, passava religiosamente todas as manhãs pela Avenida Deodoro, próximo à hora do almoço, e caminhava em direção a Rua Apodi, lá pros lados do Colégio Marista, para apanhar marmita dos patrões, na casa de uma senhora que residia na descida do Baldo.



Havia, também, um austero professor de piano e profundo conhecedor de música. Esse tinha um apelido pra lá de excêntrico. Tudo nele reluzia como ouro, dizia. Chamava a atenção quando passava, em razão dos modos fidalgos: era alto, longilíneo, um tanto calvo e óculos de grau que descansava na ponta do nariz. Andava com elegância e passos cadenciados. Cumprimentava as pessoas educadamente com um gesto de cabeça. Tinha como hábito sempre carregar consigo um guarda-chuva. No outro braço, um maço de surradas partituras musicais. Excelente profissional. Chamava a atenção sua habilidade no manuseio das teclas do instrumento. Era um espetáculo à parte quando tocava o famoso choro de Zequinha de Abreu, “Tico Tico no Fubá”. Seu remexido no banquinho do piano arrancava risos dos que o assistiam. A sua performance era algo de espetacular.

Também fazia parte desse grupo, um servidor da Base Aérea, que era conhecido por “Ai da Base!”, termo também foi usado em Fortaleza-CE nos anos 60, em virtude de um relacionamento homossexual entre dois militares. Depois disso, bastava alguém desconfiar dos trejeitos de outro para disparar: Ai da Base! ... Outro personagem também famoso era um taifeiro da aeronáutica, que ao contrário do esperado, tinha na vaquejada, o mais viril e vibrante esporte do homem do campo, seu divertimento preferido. Habilidoso na derrubada do boi arrancava aplausos quando de suas participações nas vaquejadas no interior do nosso Estado. Também era um jogador de futebol vibrante, proporcionando aos apostadores o jogo sobre com quanto tempo seria expulso, por violência em campo. Se houvesse confusão, também era destemido no uso da força física.





Porém, ninguém fazia tanto sucesso como nosso velho e conhecido “Velocidade”. Era sem dúvidas o mais antológico e engraçado de todos. Ainda hoje é lembrado como uma das figuras mais emblemáticas e alegres que circulavam nas ruas de nossa cidade, nos anos 60. Quando cruzávamos com esses personagens nas ruas de antigamente, era motivo de diversão, pois eles faziam questão de participar das brincadeiras. Não havia a famigerada homofobia e essas pessoas conviviam socialmente sem sofrer nenhuma agressão moral ou física.

Nunca soube seu verdadeiro nome. Baixinho, cabelos curtos e grisalhos, só andava numa desabalada carreira que a todos impressionava, daí seu apelido. Quando era chamado, “dava um freio de cantar pneus”, virava-se para o interlocutor e depois de um sorriso maroto seguido de uma insinuante rabissaca, prosseguia seu caminho na mesma rapidez e felicidade, pois fazia questão em ser notado.















ANTIGO BAIRRO DA LAPA - RIO DE JANEIRO

Narro esses fatos para registrar que pessoas “diferentes” não passaram apenas pela vida, mas ficaram na história, alguns com um destaque desmedido a nível nacional, como o do pernambucano João Francisco dos Santos, nascido em Glória do Goitá em 25 de fevereiro de 1900, que ficou conhecido pela alcunha de “Madame Satã”. Viveu e criou fama no bairro da Lapa no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Seu apelido teve origem numa fantasia de Madame Satã, que desfilou no bloco de rua “Caçadores de Veados”, no carnaval de 1942. A fantasia foi inspirada no filme do mesmo nome do famoso cineasta americano Cecil B. DeMille.




















MADAME SATÃ NAS RUAS DA LAPA

Foi criado em uma família extremamente pobre e bastante numerosa. Na infância chegou
a ser trocado por uma égua. Ainda jovem mudou-se para Recife e depois para o Rio onde trabalhou como carregador de marmitas. Mulato de porte atlético e muito corajoso era destemido lutador além de exímio mestre de capoeira, arte que aprendeu com os malandros do bairro, após sua chegada ao Rio de Janeiro. Acostumou-se a conviver com a escória que freqüentava a Lapa boêmia dos anos 30 , logo conseguiu trabalho fazendo segurança de casas noturnas onde protegia as prostitutas contra estupros e agressões. Eram comuns seus embates com a polícia, onde geralmente terminava preso, porém sem antes tirar de combate, alguns de seus adversários. Muitos desses arranca-rabos eram motivados principalmente quando se dispunha a defender os desvalidos: negros, mendigos, prostitutas e homossexuais, alvo constante de agressões de embarcadiços, estivadores, malandros e cafetões, que freqüentavam as ruas e cabarés da valha Lapa.











GRUPO DE CAPOEIRA NO SÉCULO PASSADO

Por conta de suas constantes brigas passou vários anos de sua vida, encarcerado. Faleceu em abril de 1976 após sua última estadia no presídio. Tinha 76 anos de idade e viveu muitas histórias do submundo da Lapa, considerado referência na cultura marginal urbana do século XX.
Em 2002, o ator Lázaro Ramos o interpretou no filme “Madame Satã”, que contava a história de sua vida. O filme obteve grande sucesso tendo ganho vários prêmios nacionais e internacionais.











PONTE DUARTE COELHO - RECIFE
Outro pernambucano que fez história foi “Lolita”, freqüentador das rodas de estudantes defronte ao cinema São Luiz e na Ponte Duarte Coelho, no Recife.
Hoje, a grande maioria dessas pessoas, vive com medo, pois a todo instante são vítimas de atitudes homofóbicas de alguns indivíduos, que não conseguem conviver com as diferenças. O ódio, explícito e às vezes velado a alguns denominados homossexuais, chega a atitudes extremas, não obstante serem esses agressores, pessoas instruídas e de elevada classe social.

O povo alemão carregará para sempre a vergonha pela intolerância introduzida na sua sociedade, no início do século XX, que resultou no extermínio de milhões dos chamados “diferentes”: judeus, homossexuais, negros, deficientes físicos e mentais, enfim, todos que não compusessem o padrão da raça ariana, idealização de um louco, fase em que a tirania se somou ao mau uso da ciência e o sadismo humano em busca de uma sociedade, que imaginara ser perfeita.