sexta-feira, 30 de abril de 2010

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Presidente do Instituto Norte-Riograndense de Genealogia-INRG, membro da UBE-RN e do IHGRN)

www.ormuzsimonetti@yahoo.com.br

PUBLICADA EM “O JORNALDEHOJE” EDIÇÃO DE 30 DE ABRIL DE 2010.

PIPA, personagens inesquecíveis

Alguns nativos se destacaram pelas suas peculiaridades. Um deles foi DEDA. Seu nome de batismo era José de Melo Andrade, mas todos o conheciam pelo apelido. Foi o quarto filho de uma família de cinco irmãos, tendo nascido em 1935. Seus pais, Manoel de Melo Andrade, paraibano de Mataraca e Josefa de Melo Andrade, tiveram desde cedo, uma maior atenção com aquele garoto que tendo nascido perfeito, sofreu em tenra idade, uma violenta queda que o deixou com seqüelas para o resto da vida. Nas condições da Pipa daquela época, já foi um milagre ter conseguido sobreviver. Não havia médicos nem remédios. Foi tratado apenas com, compressas, chás de ervas e raízes da flora local e principalmente com a fé, refletida no trabalho das rezadeiras e benzedeiras, recursos ainda muito utilizados em nossos dias, principalmente pelas populações interioranas.

Como não pode ter um aprendizado, igual ao das outras crianças, em virtude de suas limitações, voltou-se para o lado doméstico. A queda lhe deixou com uma das pernas mais curta que lhe impunha grande sacrifício para andar. Seu crescimento também foi muito prejudicado, pois chegou a idade adulta com menos de um metro de estatura.
Se não tivesse acontecido o incidente, inevitavelmente aprenderia a arte da pesca e da agricultura, o que normalmente acontecia com as crianças do sexo masculino naquela comunidade de pescadores e agricultores. Como tinha dificuldade de locomoção que o obrigava a passava a maior parte de seu tempo em casa com as irmãs e a mãe, voltou-se totalmente as tarefas domésticas, tornando-se um excelente cozinheiro. Foi essa a profissão que exerceu durante toda sua vida tendo, inclusive dirigido a cozinha de algumas famílias na praia da Pipa.

Dentre várias de suas habilidades domésticas, também aprendeu a fazer rendas de bilro. Era a única pessoa do sexo masculino que, naquelas redondezas, sabia manusear com maestria os bilros de sua pequena almofada. Durante o dia, sempre que tinha uma folga das tarefas domésticas, lá estava ele tecendo metros e metros de bicos, belas peças de renda, caminho de mesa etc.

Certa vez, foi convidado por minha prima Veneide Barbalho, ainda muito jovem, para lhe ensinar a arte das rendas de bilros. Chegou ele, bem cedinho, na casa de tio Venício e depois de acomodar sua almofada no alpendre, com voz sibilante, dispara com ares de professor: “Vamos iniciar pelos pontos mais fáceis! Com o tempo, vou lhe ensinando os outros que são mais difíceis”. E, totalmente compenetrado na aula, prosseguia: “Para fazer esse bico usamos apenas quatro pares de bilro e por ter esse formato redondinho, se chama cú de pinto”. Nesse instante fez-se silêncio total... Alguns segundos depois, tio Venício, pai da aluna, que com óculos descansando na ponta do nariz, e junto com alguns espectadores, assistiam atentamente a todas as explicações do mestre, arregala os olhos e exclama:. “Pára!...pára!. . .pára! . . . A aula esta terminada! Minha filha não vai aprender rendas com esses nomes imorais. Se o primeiro já foi esse, imagine o que vem por aí. . .” E assim, a aula foi finalizada antes mesmo de ter começado.

Deda, que sempre atuou como cozinheiro, especializou-se em conservação de peixes usando para isso uma o processo chamado “assar”, uma espécie de defumação rápida. Na Pipa daquela época não existia geladeira. Para conservar os alimentos se utilizava as mais diversas e inventivas técnicas. As raízes e frutas eram colocadas no pé das jarras d’água, que por criar um ambiente úmido em seu redor, conservava os alimentos frescos por mais tempo. Quando os botes retornavam da pesca trazendo em seus porões cavalas, albacoras, garoupas e dourados, os veranistas sabiam que podiam comprar peixes de maior porte, ou em maior quantidade, pois os que não fossem consumidos imediatamente poderiam ser enviados para Dede, que se encarregava de fazer sua conservação. Nesse processo primeiro o peixe era partido em postas, onde em seguida eram atravessadas por palitos de coqueiro para que ao “assar”, não se despedaçassem.

Colocadas em uma urupema para perder o excesso d’água, as postas eram lavados ao fogão de lenha e colocadas em uma grelha em cima das brasas aliadas a um pouco de fumaça. Bastavam alguns minutos naquela temperatura e o peixe estava pronto para ser guardado em jiraus, que ficava nas dispensas. O consumo podia ser feito em até uma semana, sem nenhum risco de estragar.

Deda sempre participava de nossas brincadeiras quando envolvia roubo de galinhas. Era comum a invasão noturna nos galinheiros das casas dos veranistas. Naquela época, em quase todos os quintais dos veranistas, existia uma espécie de quarto, feitos com varas de faxina, denominado “galinheiro”, onde eram mantidas as aves que seriam consumidas durante o período do veraneio. Quando a sorte ajudava e conseguíamos adentrar nesses locais e surrupiar algumas “penosas”, o caminho já estava traçado: direto para a casa do saudoso Deda.

Ele não se importava a que horas fosse acordado, sempre nos recebia de bom humor, pois adorava participar dessas brincadeiras. De lamparina na mão, e usando um chambre branco, lá vinha ele com aquele andar característico. Sempre ensaiava uma bronca por tê-lo acordado àquela hora da noite, mas era tudo encenação. Logo estava ele com a turma, reunida numa palhoça que ficava no fundo do quintal, que chamava de cozinha, já colocando água no fogo pra preparar a galinha. Enquanto esperávamos o que seria o tira gosto, alguns já começavam a aliviar o peso das primeiras garrafas.
Vez por outra, alguém conseguia subtrair da dispensa de casa, um litro de Whisky, bebida pouco comum naquela época, um rum Merino ou mesmo a vodka Príncipe Igor , bebidas guardadas a sete chaves, prevenindo-se quanto à visita de algum visitante ilustre que resolvesse aparecer, de supetão.

Quando a galinha ficava pronta, muitos de nós já estávamos de pernas bambas, pois grande parte da bebida já tinha sido consumida com a ajuda das sempre presentes, sardinha coqueiro, carne de quitute da vaquinha ou ainda um voador seco assado na brasa. A farra tinha seqüência na beira da praia. Logo aparecia um violão e quase sempre terminavam sendo dedilhada ao pé de algumas janelas. Às vezes me recordo como saudade daquelas serenatas que fazíamos nas madrugadas de janeiro de uma Pipa adormecida. Entristece saber que nunca mais teremos oportunidade de repeti-las, pelo menos naqueles moldes de antigamente.

Muitas vezes convidávamos o inocente dono da casa onde tinha havido o roubo para participar da brincadeira. Depois do fato consumado, galinha na panela quase pronta, farofa bem acebolada e as primeiras garrafas sendo esvaziadas, era então revelado o delito. Depois da surpresa e por não tendo outra opção, participava da farra. O incauto parente além de perder a penosa, ainda tinha que agüentar a gozação pelo resto da noite. Nunca ninguém se aborreceu com essas brincadeiras, pois eram feitas, exclusivamente com nossos parentes.

Dante Simonetti foi um dos que mais sofreram com os roubos. Como era proprietário de uma granja em Parnamirim-RN, sempre tinha seu galinheiro recheado de frangos branquinhos e apetitosos. Alfredinho, nosso primo e imagine, hóspede de Dante, era que mais dava baixa em suas galinhas. Vez por outra, após o jantar, davam um jeito de sorrateiramente, ir até o quintal e deixar uma das portas que acessavam a casa, somente encostada. As aves à noite, eram transferidas para dentro de casa, para maior segurança. Lá pela madrugada os meliantes, já avisados das condições favoráveis, não tinham a menor dificuldade de chegar ao quarto onde eles dormiam.

Dona Cândida Simonetti, carinhosamente chamada de Candinha, esposa do saudoso Danilo Simonetti, também sofreu com os roubos. Certa vez, esperando a visita do então prefeito de Natal, Tércius Rebelo, para um almoço em sua casa na Pipa, mandou comprar de véspera em Goianinha, uma manta de carne-de-sol. Recomendou ao portador que só comprasse se fosse chã de dentro. Visita ilustre sempre se oferece do bom e do melhor. Boca da noite, a carne foi pendurada em um varal no sereno, para ficar macia pegar mais gosto ao assar, prática muito utilizada na época. Olhos disfarçados rondavam ao redor, observavam aquela tentação.

Entusiasmada com a visita do prefeito, Candinha não recolheu a carne em tempo, e pagou caro pelo esquecimento. A manta de chã de dentro, comprada com muita dificuldade e todas as recomendações, desapareceu misteriosamente. Dizem que foi consumida da mesma forma que as galinhas, na beira da praia, assada na brasa e nesse dia em especial, em baixo de uma lua cheia e inspiradora. Nunca soubemos o que o ilustre visitante almoçou naquele dia.

Ainda na década de 80, Deda vendeu sua casa a Múcio Barbalho e mudou-se para a rua de cima. No dia 19 de março de 1999, faleceu em Natal aos 64 anos de idade no hospital Walfredo Gurgel, depois de ter se submetido a uma cirurgia de cateterismo. Morreu o homem, permaneceu o mito. Este, certamente, será sempre lembrado pelas gerações que viveram e conviveram na praia da Pipa do “tempo da delicadeza”.

Pipa, novembro 2009