sexta-feira, 1 de junho de 2012

O MEDO PODE ENTRAR


   Coisa medonha, Senhor Redator, é viver sem sossego. Quanto mais se o cristão escolheu para viver numa vila antiga, sem riqueza e sem soberba. E como se o medo nascesse dos becos e das ruas quietas e saísse andando como um fantasma do mal. É assim que vive o povo da Redinha nes­ses tempos de danações. É o que resta aos que moram nesta ci­dade tão bonita, entre o rio, o mar e os morros, numa sucessão de notícias que hoje fazem deste lugar do mundo um assom­brado exercício de sobrevivência.
Sou de outros tempos. De quando nas manhãs e tardes an­tigas seu povo pescava e pastorava as nuvens. Os alpendres eram uma extensão natural das casas, uma sombra doce que espan­tava o mormaço, e nas latadas as conversas ajudavam a viver. De uns anos hoje adocicados na lembrança com a fartura de peixes - das tainhas nas redes e dos xaréus que vinham ainda vivos no tresmalho do arrastão. A vida não chegava pela tevê, para fazer a paráfrase do verso bandeiriano, mas era vivida como se fosse poesia.
Esta vila, Senhor Redator, que recebeu Mário de Andrade e Câmara Cascudo na velha casa de Barôncio Guerra, numa peixada homérica, servida com um zambê de côco dançado na beira da praia, teve verões imensos. Aqui o poeta Henrique Castriciano renovava os pulmões cheios de cavernas que anun­ciavam a morte com sua tuberculose. E o professor Antônio Soa­res, de olhos abertos para o céu e alma delirante, viu duas luas, um mistério tão grande que nem a Nasa, com toda ciência, conseguiu ver.
Ora, quem, senão uma vila assim, com o riso franco da vida sem perigo, por acaso teria um time com o nome de Morte Ftebol Clube, e com a presença de um jovem craque chamado Lenine Pinto? E a gargalhada de Dalila que para Berilo Wan­derley, e como aquelas irmãs Boninas, lá de Goianínha, eram corredores de ternura? E Cutruca, personagem de Newton Na­varro que vencia suas ruas de areias alvas como as dunas can­tando canções que ninguém entendia, como se viver fosse um jeito de amar os dias?
E a Redinha que veio depois, e viveu em nós na sua últi­ma geração boêmia, como se fosse uma ilha a abrigar os de­serdados da tristeza, de tão felizes? E as suas casas de janelas acesas pelo sol das manhãs? E as tardes, abertas para que a lua e as estrelas entrassem sem pedir licença? E a cachaça que ainda vi brilhando nas mesas, entre volutas de cajus vermelhos e abacaxis dourados, resplandecendo nos olhos mornos dos seus últimos boêmios? E a vida que, de tão intima, não se sabia se um dia acabava?
O medo hoje mora nestas ruas. Os dias de chuva não afagam com ternura de mãos aveludadas o rosto da gente. É perigoso, muito perigoso, tomar banho de chuva no beiral dos seus telhados. É arriscado andar nos becos desertos, bares e lugares. É desaconselhável abrir as portas e esperar a noite chegar. Foi-se o tempo, diria mesmo, que era bonito repetir o verso do poema de Mário da Silva Brito e para abrir as ja­nelas para encher a casa de nuvens. Como, Senhor Redator, se o medo pode entrar?

Publicado hoje na coluna Cena Urbana do jornalista Vicente Serejo