Pedro Simões Neto
Domingo era dia de folia. Ou não.
Poderia ser no Sábado. Eram as usinas que decidiam se seria a Sexta-feira ou o
Sábado o dia do pagamento. Em decorrência de tal decisão, a feira só poderia
ocorrer no dia subseqüente ao do pagamento, no Sábado ou no Domingo. E era na
feira onde começava a folia, numa das inúmeras “bancas” ao ar livre, na
“quadra” do mercado, ou nos “locais”, dentro do prédio público. O freguês
tomava uma e outras e voltava feliz para casa, sem pensar na segunda-feira
seguinte.
O prédio do mercado público da cidade foi construído pelo coronel Onofre José
Soares, pai do “major” Onofre Soares Junior, que obtivera concessão do então
governo provincial para explorá-lo durante vinte anos. Foi inaugurado em 1881
com manifestações de desagrado por parte do povo, rezam as crônicas, tendo em
vista uma postura municipal haver determinado a mudança da feira que
tradicionalmente se realizava na rua Grande, para as dependências do novo
prédio. Mesmo sob o protesto, a feira, então, passou a ser realizada inicialmente
dentro do prédio e depois, em torno dele.
A feira era, e ainda é, uma instituição sócio-econômica da maior importância, sobremodo nos anos cinquenta.
A feira era, e ainda é, uma instituição sócio-econômica da maior importância, sobremodo nos anos cinquenta.
Todas as ruas convergem para o “quadro” do mercado e de lá saem para o
interior, num incessante ir e vir de caminhões, cavalos, burros, carroças e
bicicletas. O mercado público é como uma gigantesca centopéia que oferece os
seus membros a uma comunidade de formigas.
O mercado é também uma central de informações, das mais triviais – quem chegou e quem partiu ou os últimos boatos da cidade – até as mais importantes, como o resultado do jogo do bicho, o preço da tonelada de cana e as cotações de feijão, do milho, da mandioca e da farinha.
As feiras realizavam-se aos sábados, mas todos os dias os feirantes permanentes – pequenos comerciantes que não tinham um “ponto” para negociar – armavam as suas barracas estimulando a freguesia com pregões cantados ou versejados.
O mercado é também uma central de informações, das mais triviais – quem chegou e quem partiu ou os últimos boatos da cidade – até as mais importantes, como o resultado do jogo do bicho, o preço da tonelada de cana e as cotações de feijão, do milho, da mandioca e da farinha.
As feiras realizavam-se aos sábados, mas todos os dias os feirantes permanentes – pequenos comerciantes que não tinham um “ponto” para negociar – armavam as suas barracas estimulando a freguesia com pregões cantados ou versejados.
Do burburinho dos feirantes, destacavam-se dois setores do comércio: os
vendedores de ‘mangaio’ e os curandeiros com seus remédios milagrosos, aliás,
extensões do mesmo ramo de negócios. Os ‘mangaieiros’ trabalhavam com ervas,
raízes e pedras, cada produto com a sua indicação terapêutica peculiar, alguns
com diversificadas panacéia. A maioria dos curandeiros era composta por
charlatões. Aqui e ali, muito esporadicamente, identificava-se um produto com
cura atestada pela tradição, diferentemente dos mangaieiros, referenciados
pelos hábitos da população pobre e por remotíssima tradição oral. Os curandeiros
trabalhavam com componentes fantásticos, taticamente escolhidos para criar
ilusões nos adquirentes: óleo de boto, para aumentar a virilidade; barbatana de
cação, para dar força e valentia; gordura de ‘peba’ para fechar o corpo contra
as ‘mulestas’. Até o caldo da ‘xamexuga’ já foi oferecido para impaludismo, por
aí se veja...
Dentro do mercado ficavam os ‘locais’. Eram boxes mantidos por inúmeras
gerações da mesma família, que mantinham fiéis à venda de determinados
produtos, comercializados apenas no mercado: artigos de couro, cipó, palha,
flandres e certo tipo de miudezas. E também as comidas prediletas dos
feirantes: caldo de cana, bolo preto, da moça, de macaxeira, de batata e de
mandioca; prato-feito de almoço com carne de sol, feijão e farinha de mandioca,
com direito a umas colheradas de paçoca e a um pouquinho de torresmo; café da
manhã farto; xícara grande de café-com-leite, cuscuz com ovos, macaxeira,
queijo do sertão, tapioca e pão com manteiga.
A relação dos produtos vendidos encheria muitas folhas de papel almaço. Chapéu
de couro, rebenque, botinas e alpercatas de couro cru, sela e arreios,
cangalhas, peneiras, raladores de coco, coadores, cuscuzeiros, chaleiras,
candeeiros e lamparinas, penicos, bruxas de pano, mochilas, chapéus e esteiras
de palha trançada, cachimbo, fumo de corda e fumo caipira para cigarros, esculturas
de barro (boi, vaqueiro, cavalo, farinhada, forró, casamento, cantoria...)
quadros emoldurados com figuras de santos, espingardas de soca, facões e
peixeiras, bainhas, redes de dormir e de pescar, malas de madeira (maletas e
malotas), caçuás de cipó, espelhinhos redondos e ovais, pavios para os
candeeiros, canivetes de ‘gilete’, livrinhos de cordel, cintos e cinturões,
copos e xícaras de alumínio, brinquedos toscos de madeira, destacando-se o
boneco pulador e o “João redondo”. Que ninguém possa esquecer dos barulhentos
rói-róis.
A praça do mercado era o centro comercial da cidade, fato que não incomodava
nem preocupava os renitentes proprietários de casas residenciais. Os mesmos
permitiam a utilização dos quintais como guardadouros de animais e de gêneros.
Punham grandes jarras de barro nos alpendres como depósito d´água para
serventia da sede dos feirantes. A hospitalidade aos interioranos era praxe na
cidade, mas não havia promiscuidade. Cada família ou região contava com casas
determinadas.
Aquelas cujos proprietários tinham fazendas nas regiões dos
hóspedes, ou suas empregadas tinham ligações familiares, ou eram agregados
políticos ou afilhados. Esses apresentavam outros, que iam se incorporando à
hospedaria. A obrigação dos hospedeiros era a de oferecer sombra, água e
depósito. Um desses proprietários tinha um caminhão de três boléias, denominado
‘misto’, exatamente porque transportava passageiros e cargas, que tinha a
concessão da linha que margeava a ribeira do vale.
O quadro do mercado era uma só festa de confraternização, alegria e muita
conversa arrastada dos homens e a animada boataria das mulheres, que nem
parecia que tinham se encontrado no dia anterior. Era uma profusão de cores,
sons e cheiros. Muita gente descalça, ou calçando chinelas e alpercatas. Raros
de botinas, mais raros ainda de sapatos. Muita gente de chapéu de palha,
inclusive algumas mulheres. Poucos de chapéus de couro. Mais raros, ainda, de
chapéus de massa. Calças caqui com camisas de algodãozinho e vestidos de chita.
Cheiro estonteante e suor, cachaça, água de cheiro, banha nas carapinhas,
colorau, dendê, peixe de sal preso, esterco e urina de animais, sarapatel,
buchada e torresmo, couro cru, goiaba, manga e tempero verde.
A feira era uma festa, mesmo que não fosse, mesmo que não quisesse, mesmo que
não pudesse. Os cantadores atraíam o público fervoroso, aboletados em
tamboretes, apoiados nas mesas dos bares, com os violões a tiracolo. Os
vendedores de cordel amplificavam os versos dos autores em engenhosos cones de
folha de flandres colados à boca. A banha de porco, além da natural serventia
para os assados triviais e as frituras, era anunciada também para esticar o
cabelo e ser usada como lubrificante pelos noivos.
Os políticos andavam prá lá e prá cá, exibindo-se para o eleitorado do interior. Ora pagavam uma ‘chamada’ de cana para um grupo, ora presenteavam as mulheres e os velhos com ‘santinhos’ de padre Cícero e Frei Damião. Dependendo, davam panos e água de cheiro às matriarcas. Quanto maior a família, mais valioso o presente. Se estivesse pertinho das eleições punham uma chapinha com o nome dos candidatos dentro do embrulho do presente.
Os políticos andavam prá lá e prá cá, exibindo-se para o eleitorado do interior. Ora pagavam uma ‘chamada’ de cana para um grupo, ora presenteavam as mulheres e os velhos com ‘santinhos’ de padre Cícero e Frei Damião. Dependendo, davam panos e água de cheiro às matriarcas. Quanto maior a família, mais valioso o presente. Se estivesse pertinho das eleições punham uma chapinha com o nome dos candidatos dentro do embrulho do presente.
A hora de voltar era a hora de voltar, marcada pelo excesso de cachaça, pelo
cansaço, por algum mal acontecido ou pelo prenúncio da escuridão. Então, era
hora de selar e arrear os cavalos, tirar o sapato apertado, ou embarcar nos
carros de boi e carroças, ou nas carrocerias dos caminhões e voltar ao assunto
para mais uma semana.
Na feira ainda ficariam os desempregados e os mendigos, catadores de restos de
alimentos ou que barganhavam os refugos dos vendedores. Um deles recolhia os
restos do chão, quando pechinchava as miuçalhas dos feirantes, para fazer o
“caldo da ressaca”, também chamado “caldo da caridade”, uma mistura de
verduras, ossos e “péia” de carnes que levantava até defunto.
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