segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Presidente do Instituto Norte-Riograndense de Genealogia-INRG e membro do IHGRN)
www.ormuzsimonetti@yahoo.com.br

Publicada no "O JORNAL DE HOJE" dia 30 de outubro de 2009

PIPA, SAUDOSOS VERANISTAS – Maurinio Sena

No dia 07 de fevereiro de 1981 foi feito o primeiro teste da energia elétrica na Pipa. Logo em seguida, todos os veranistas se apressaram para instalar em cacimbas já existentes, ou em poços artesianos previamente cavados, bombas elétricas para abastecer as caixas d’água. Esse abastecimento até então feito com muito sacrifício à custa de horas a fio, “se exercitando” nas antigas e pesadas bombas manuais “Morumbi”, que na época era o que de melhor existia no mercado.

Para se conseguir pouco mais de 1.000 litros d’água, era preciso muito suor e alguns calos nas mãos. Essa tarefa era delegada aos homens da casa já que as mulheres se encarregavam apenas de gastar o precioso líquido em suas atividades domésticas. E como quem recebe “de graça” não se preocupa em gastar, nossas mãos viviam cheias de calos.

Foi nessa época que eu, juntamente com os saudosos Múcio Barbalho e Evilásio de Souza Lima, nos especializamos na instalação desses equipamentos. Esse serviço, embora gratuito, era executado com todo profissionalismo da equipe, que sempre dava um jeito de receber pelo “serviço prestado” de uma forma, digamos, mais sutil. Os serviços eram agendados sempre para os fins-de-semana. Começávamos lá pelas 10 horas da manhã, para que, calculadamente, pudéssemos chegar e atravessar com folga a hora do almoço. A única responsabilidade do dono da casa era de nos abastecer, durante a realização do serviço, com cerveja gelada, cachaça e tira-gostos, também chamados na época de parede, à vontade.

Numa dessas ocasiões, a instalação da bomba foi na casa de Maurinio Sena. Como ele ainda não havia feito o poço, que na praia era conhecido como “poço tubular”, por ser feito com tubos de PVC, o equipamento seria instalado numa cacimba. Começamos o serviço na hora marcada e com pouco mais de uma hora e meia de trabalho o equipamento já estava pronto para o funcionamento. Era nesse instante que começava toda a malandragem. Alguém dava um jeito de afrouxar uma das conexões que ficavam longe das vistas dos curiosos e isso provocava a entrada de ar no sistema, impedindo seu funcionamento. Era então feito uma pausa para o descanso que sempre vinha acompanhada das bebidas e dos petiscos.

Depois de várias horas de descanso, sempre alguém se oferecia para resolver o “problema”, mas nunca encontrava o tal defeito. Nesse dia especificamente, o problema só teve solução quando já escurecia e os técnicos, juntamente com outros participantes da farra, já bem “melados”, tinham devorado todo o tira gosto disponível e já estavam tomando, como caldo, até mesmo a sopa que dona Lindalva, esposa de Maurinio, havia preparado para o jantar. E tudo isso com a devida cumplicidade do esposo, que era quem mais gostava dessas brincadeiras. Essa intimidade era comum entre nós. Numa dessas farras na minha casa, Maurinio passava pela cozinha, retornando do banheiro, quando viu a mamadeira de leite que minha esposa tinha preparado para nossa primeira filha, hoje com 30 anos de idade. Não teve dúvidas, atacou a mamadeira e sem mesmo tirar o bico, tomou o mingau até o último gole, depois de mandar para dentro uma boa lapada de cana.

Começou a freqüentar a Pipa nos anos cinqüenta e se hospedava na casa de Arthur de Flora. Os veraneios começaram em 1978 logo após ter comprado a casa que pertencia a Francisquinho. A partir desse ano, sempre passava os meses de janeiro e fevereiro veraneando com a família e só retornava à Natal, como a maioria dos veranistas, após o carnaval. Com o seu jeito simples e amigável, conquistou logo a comunidade e também os veranistas. Como sua casa ficava em frente ao porto dos barcos, sempre aos finais de tarde lá estava ele em seu alpendre, rodeado de pescadores, que iam trocar dois dedos de prosa, enquanto aguardava os botes que regressavam da pesca. Foi esse relacionamento fraterno que mantinha com a comunidade, que no fatídico dia 7 de fevereiro de 1994, dia de sua morte, presenciamos, emocionados, a maior prova de amizade e gratidão dos nativos para com aquele que esteve sempre à disposição daquela comunidade.

Inexplicavelmente, resolveu comemorar seu aniversário uma semana antes. Fez uma grande festa em sua casa e foi muito prestigiado com a presença de parentes e amigos. No outro dia, acordou mais cede que de costume e não esperou pelo seu amigo e companheiro de caminhada, Edison Costa de Mello. Naquela manhã, resolveu caminhar sozinho. Seguiu no sentido da Pedra do Moleque e chegou até a praia das Minas, onde seu corpo foi encontrado por um grupo de turistas, que também faziam caminhadas naquelas praias desertas, já próximo a praia de Sibaúma.

Logo chegou a notícia na Pipa e muitas pessoas da comunidade correram para o local. Eram homens, mulheres e até crianças que seguiam os pais, todos fizeram questão de ir ao local onde o corpo ainda se encontrava.
Depois que uma das filhas autorizou a remoção, os homens o puseram em uma rede e o conduziu, barreira acima, em terreno íngreme e de difícil caminhada, até a Pipa. O cortejo seguiu no mais completo silêncio, em respeito à dor dos familiares e amigos daquele que por tantos anos conviveu naquela comunidade como se lá tivesse nascido. Tinha tantas mãos e ombros querendo ajudar naquela caminhada de volta pra casa, que muitas vezes, o pau da vela de um barco, que utilizaram para armar a rede onde conduziram o corpo, era a toda hora disputado por aqueles que seguiam o triste cortejo. Foi deveras emocionante essa demonstração de respeito e amizade.

Várias pessoas na Pipa se ofereceram para trazê-lo, de onde ele foi encontrado, em seu carro, percorrendo uma precária estrada que chegava próxima a praia das Minas, o que foi prontamente recusado. Os amigos fizeram questão que o seu último retorno para casa, fosse feito em seus ombros e braços. Queriam com essa atitude prestar a última homenagear ao amigo e companheiro que muito embora nascido em terras Pernambucana, adotou aquele pedaço de chão como sendo a sua terra natal.