segunda-feira, 4 de abril de 2011

A LEI - LIMA BARRETO

Na edição do dia 7 de janeiro de 1915 o Diário da Noite circulou nas ruas do Rio de Janeiro,
na coluna Vida Urbana, do escritor Lima Barreto, com sua crônica 'A Lei'. Há 96 anos, portanto, era dele o espanto diante da eficiência de certas leis, a ponto de perguntar, fechando o texto: 'De que vale a lei? É a mesma indagação que os brasileiros jazem diante da decisão do Supremo Tribunal Federal com o voto do desempate que livrou o ficha suja de perder seu mandato
. Quase um século depois, a pergunta do genial Lima Barreto se mantém viva: De que vale a lei?

A Lei

LIMA BARRETO


Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.
Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também ¬não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma in¬clinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, base¬ada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procurou ¬uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.

Vê-se bem que na intromissão da "curiosa" não houve nenhum¬a espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade e servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.
Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!
Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via -sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorres¬se com resignação.

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca espera¬va parar, mata-se.
Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para prote¬ger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque, outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

(Transcrito da coluna CENA URBANA de Vicente Serejo)