André d'Albuquerque Maranhão Arcoverde nasceu no engenho Cunhaú, freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Vila Flor, termo de Goianinha, no ano de 1797. Era o segundo filho do tenente-coronel José Inácio d'Albuquerque Maranhão e de d. Luzia Antônia, irmã de André d'Albuquerque, o des¬graçado Chefe da revolução de 1817 no Rio Grande do Norte.
Teve a meninice tradicional dos meninos ricos, filhos de fidalgos, donos de engenhos. Correu a cavalo, saltou por¬teiras, armou arapucas, pulou os córregos, tomou banho no rio Piquiri, sesteou debaixo das sombras das velhas árvores, formou batalhão com os moleques da redondesa, esmurrou os primos, indigestou de bolo-preto e doce-seco, trepou aos coqueiros, assustou as matronas, dormiu cansado ...
O Pai, homem áustero e poucas falas, de manso trato e ameno viver, era governado pela mulher, dona Luzia Antô¬nia, enérgica e voluntariosa, chamada o' Homem da Família, de quem o filho herdaria a melhor parte de seu gênio impul¬sivo. Ao entrar na mocidade, José Inácio mandou Dendé, como todos os conheciam, para a Europa, aos estudos. Es¬tudar o que? Leis? Cânones? Medicina? Não se sabe. Portu¬gal era o viveiro onde se implumavam os borla-e-capêlo da época. Ignora-se o país onde Dendé Arco Verde fôra estu¬dar. D. Izabel Gondim afirma ter sido Paris. Alberto Mara¬nhão informa que a Alemanha. Creio em Portugal. Portugal era a Europa, para quase todos os aristocratas antigos.
Em 1817, estava na Europa quando a revolução estourou. Quando regressara ao Brasil? Não se sabe ainda. Suas notícias iniciais são de 1830. Voltando ao Cunhaú não trouxe diploma nem curso feito mas vinha com uma men¬talidade formada e concluída. Não há alteração dai em dian¬te nos seus modos e procedimentos. Há nele, a imutabilidade dos temperamentos decisivos.
É a mais estranha e sugestiva das figuras da Casa de Cumhaú. Em toda zona agreste do Rio Grande do Norte não há quem lhe desconheça o nome e não saiba uma sua faça¬nha. Quase oitenta anos depois de sua morte, ainda o Povo lhe cita o nome com respeito supersticioso. Indicam todos os recantos de sua morada, os caminhos percorridos, os crimes, a coragem, o arrojo irreprimível. Hoje, como há mais de meio século após seu passamento, todos os traba¬lhadores de dois municípios, só aludiam à sua pessoa, com um vagar amedrontado, dando, invariavelmente, o tratamen¬to oficial, "o Brigadeiro." E a voz cava estava traindo uma longa capitalização de obediência expontânea.
Dendé Arcoverde é um puro homem da Renascença, sem medo, sem pudor, sem respeito, sem supertição, despido de preconceitos, sem temer a Lei, nem ao Imperador, nem a Polícia, nem o Gabinete Ministerial, nem inimigos, vingan¬ças, ódios. Insensível, superior, desdenhoso, atrevido, inca¬paz de compreender os limites de sua vontade, ciente, inte¬gral que seu direito ia até as fronteiras de sua fôrça ele não tem remorsos nem piedades inferiores. Deliberando, exe¬cuta, com a precisão, a nitidez, a naturalidade de uma função normal. Tudo nele é natural, próprio, congênito. Diz o que quer, manda avisar a morte, intima que alguém deixe a casa e se mude, chibateia, surra, tortura, mata a punhal, a tiro, a veneno, comanda um exército de escravos ou pratica, sozinho, o ato, sem um arrepio na face, imóvel .e magnífica, como um autêntico barão feudal, um verdadeiro Herren-meister, pulso de ferro, coração de bronze, ao sol tropical do Brasil.
Tem, igualmente, conservadas, ciosamente, as virtudes de sua Raça. É faustoso, amante do cerimonial, generoso hos¬pedador, respeitando, como a um rito religioso, o próprio inimigo que se acolhesse à sua residência, dando, apenas, o número de dias bastantes para que se puzesse a salvamento da alcatéa que sacudiria em perseguição inexorável.
Não o podemos enquadrar dentro das regras da Moral e da Lei. Dendé Arcoverde é uma exceção, o Homem Forte instintivo, arrebatado, feroz, cavalheresco, impressionável, mag¬nífico de valentia, de atrevimento, de loucura pessoal. Não sofre um insulto. Não tolera um recalque. Não renuncia ao menor desejo. Veio, como Cezar Borgía, trazendo o "tuurumis¬mo", o Homem natural e vivendo pelas leis-das-homens. Como Cezar Borgia, desapareceu numa tragédia pequenina, inferior aos seus méritos reais de impulsão e de vontade.
(06.05.1940)