Na minha infância, na cidade de Natal, recordo que gostava de admirar, nas
manhãs ensolaradas, uma grande diversidade de pássaros que cantavam nos pés de
ficus benjamina que adornavam e arborizavam a Av. Deodoro da Fonseca, onde residia
com minha família na casa de número 622. Cantavam e nidificavam naquelas
árvores, entretanto, eram bem mais “ariscos” dos que os de hoje. Naquela época,
os garotos se divertiam puxando “carrinhos” feitos com latas de leite vazias que
eram cheias com areia, ou com carros feitos de madeira que eram confeccionados
por nós mesmos. A madeira era obtida no antigo Armazém Natal que ficava na esquina
da Av. Rio Branco com a Rua Ulisses Caldas. Esse tipo de trabalho de fazer os
próprios brinquedos ajudava a desenvolver a criatividade e a habilidade com as
primeiras ferramentas, além do apego e amor aquele brinquedo. Os carros ou
caminhões mais sofisticados tinham as rodas cobertas com tiras de borracha e os
feixes de molas eram feitos com aspas de ferro, muito utilizadas na época, nas embalagens
que chegavam ao comércio. Recordo de Alzir, um garoto mais velho que nós, morador
da Rua Coronel Cascudo, que se tornara exímio artesão, confeccionando belos
jeeps e caminhões de duas “boleias”. Também brincávamos de bolinhas do gude (bolinha
à vera!); com rodas de ferro, que eram empurradas e equilibradas com um arame de
ponta envergada etc., porém, o brinquedo mais utilizado eram as temidas
baladeiras.
Estilingue ou
baladeira compunha-se de um gancho de madeira em forma de Y que eram retirados
de árvores como o fícus Benjamina e das goiabeiras, considerados os melhores.
Nas extremidades superiores amarravam-se duas tiras de borracha com média de 20
cm de comprimento por 1,5 cm de largura, retiradas de velhas câmaras de ar ou
compradas no antigo mercado municipal na Av. Rio Branco, onde hoje funciona o
Banco do Brasil. Na outra extremidade as tiras eram presas a um pedaço de couro
ou sola, que conseguíamos com um antigo sapateiro que tinha sua oficina na Rua
Princesa Isabel. A baladeira era um
brinquedo possuído e desejado pela maioria dos garotos daquela época. Tinha
lugar de destaque nas perigosas guerras que fazíamos contra meninos de outras
ruas. Por exemplo: Av. Deodoro versus Rua Felipe Camarão. Av. Deodoro contra a
Travessa Camboim, do temido “Canteiro”, famoso personagem que metia medo nos
garotos da época, por ser muito brigão, e diziam que sempre andava armado com
um canivete.
Nesses combates utilizávamos seixos
(pedra rolada) que considerávamos “munição real”. Quando a disputa era apenas
diversão entre meninos da Av. Deodoro, utilizávamos apenas munição de “festim”
que era os frutos ainda verdes da mamona – carrapateira -, muito abundantes nos
terrenos baldios e que nunca machucavam, pois só podiam ser atiradas a
distâncias consideradas seguras. Mas, aqui confesso envergonhado “mea culpa”,
pois, também a utilizei em diversas ocasiões, contra as indefesas aves, pois, o
único pecado que elas cometiam era cantar. E ao fazê-lo, eram facilmente localizadas
entre as folhagens das árvores e abatidas com as certeiras pedras que atirávamos
pelo simples fato de testar a pontaria, nas inconsequentes brincadeiras de
criança.
Naquela época as residências
costumavam ter em seus quintais, além dos galinheiros onde as “penosas” eram
cevadas para os dias de festa, daquela visita inesperada ou ainda durante os 30
dias de resguardo das mulheres parideiras, muitas árvores frutíferas. Pitombeiras,
abacateiros, sapotizeiros, mangueiras, mamoeiros, goiabeiras, só para citar as
mais comuns. Devido à grande quantidade dessas árvores, esses quintais eram
freqüentados por pássaros que, na amanhecência do dia, nos despertava com seus
gorjeios melodiosos.
Na década de 70, por volta dos anos
de 1973/74, nossa fauna local sofreria uma grande mudança. Nessas mesmas
árvores já podiam ser vistos os famigerados pardais. Inicialmente em casais, e
pouco tempo depois em enormes bandos. Fui apresentado a esses pequenos predadores,
quando ainda morava no Rio de Janeiro, onde iniciei minha vida profissional, no
Banco do Brasil.
A chegada desses pássaros em nossa
cidade, a exemplo do que aconteceu em outras cidades do nosso país, constituiu-se
num verdadeiro desastre para nossa fauna alada de pequeno porte. Infelizmente,
na época, ainda não havia esse apelo ecológico em defesa da natureza, sua fauna
e flora. Porém, tenho minhas dúvidas que se o fato tivesse ocorrido em nossos
dias, algo fosse feito para evitar o desastre diante de todas as agressões sofridas
pela natureza, que diariamente presenciamos por esse Brasil a fora.
Predadores destemidos, obstinados,
oportunista e territorialistas, os pardais não demoraram a expulsar de nossas
árvores, a grande maioria dos pássaros de seu porte, e até mesmo os de porte
mais avantajado, como os anuns.
Esse predador da espécime (Passer domesticus) que tem origem
européia foi trazido para o Brasil no
início do século XX, e teve como porta de entrada a cidade do Rio de Janeiro. A
sua introdução tinha como objetivo de reduzir a proliferação de moscas e
mosquitos que infestavam a cidade. Apesar de também serem predadores de
insetos, a base de sua alimentação se constitui de grãos, o que resultou na
pouca eficiência no controle da população desses invertebrados. Essa decisão
precipitada e irresponsável que introduziu em nosso território, uma espécie
endêmica do continente europeu, sem as devidas avaliações do impacto que
causaria, constituiu-se num verdadeiro desastre para nossa fauna.
Na luta por territórios, os pardais utilizam
várias técnicas para expulsar seus concorrentes. Uma delas se constitui no
ataque em bandos, deixando suas vítimas em desvantagem numérica e obrigando-os,
consequentemente, a fuga. Praticam, também, a invasão de ninhos e destruição dos
ovos não eclodidos ou simplesmente a matança dos filhotes recém-nascidos. Como
os pardais são aves com hábitos urbanos, e convive bem com a presença do homem,
é bem possível que nossos pássaros, que não pereceram diante dos invasores, tenham
encontrado refúgio seguro nas matas que cobrem as dunas que circundam parte de
nossa cidade.
Entretanto, como a natureza é sábia e
quase sempre resolve os problemas causados pela bestialidade dos homens, ao
longo dos anos nossos pássaros foram se adaptando a presença do invasor e aprendendo
a se defender com maior eficiência, e assim conseguiram conviver com os
invasores.
Há algum tempo, todas as manhãs,
caminho com um grupo de amigos pela Av. Rodrigues Alves. Sinto-me feliz em observar
que há alguns anos os pássaros estão voltando para nossas árvores. Ao contrário
da década de 70, é bem inferior o número de pardais encontrados. Durante as
caminhadas vemos muitas rolinhas andarem em nossa frente à cata de pedrinhas e
migalhas, sem temer os transeuntes. Ficaram tão mansinhas que às vezes precisamos
desviar o caminho para não pisá-las. Em frente à capela de São Judas Tadeu, no
final da Av. Rodrigues Alves, as inúmeras rolinhas empoleiradas nos fios da
rede elétrica, lembram as linhas de uma partitura musical com todas as notas de
um brasileiríssimo chorinho, quem sabe, o Tico-Tico no Fubá.
Os Bem-ti-vis, sanhaços, anuns,
sibites, rouxinóis, colibris e até os bico-de-lacre, este último endêmico do
continente africano, mas que não tem causado nenhum dano a nossa delicada fauna
alada, desfilam por entre as árvores de nossa cidade cantando animadamente,
para o deleite dos que cedo madrugam.
A mansidão e a excelente proliferação dessas
aves devem-se, principalmente, a consciência ecológica despertada “ainda que
tardia”, e atualmente muito valorizada. Infelizmente em nome dessa bandeira, alguns
fanáticos têm cometidos excessos o que terminam por prejudicar toda a comunidade.
Mas essa mesma tranqüilidade, também se deve ao desaparecimento dos tais meninos
munidos com suas terríveis baladeiras.
Um dia resolvi trazer um pedacinho dessa
natureza livre, pra dentro da minha morada. Comprei um alimentador de
beija-flor, enchi-o com uma mistura de água com açúcar, coloquei na sacada do
meu apartamento, e pacientemente esperei. Ao fim do quinto dia tive a alegria
de receber o primeiro visitante. Era um beija-flor de cor negra, chamado
popularmente de tesourão, pois, tem suas penas da calda em forma de tesoura
aberta. A partir desse dia, a todo instante, recebo a visita de várias
espécimes, de tamanho e plumagens variadas. É uma delícia para os olhos e a
mente. Depois de algum tempo de observação, já posso identificar cada um dos
visitantes e até mesmo nominá-los.
Hoje, sempre que entro em casa logo me sento
na varanda para observa esses pequenos seres que, além de desempenhar
importante papel na polinização das plantas, se constitui numa das mais belas
criação da natureza.
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