MINHA HOMENAGEM AO DIA DAS MÃES
Dona
Cirene Barbalho Simonetti era a mais antiga e assídua veranista da Praia da
Pipa. Contava apenas três anos de idade quando chegou nesta praia pela primeira
vez, em companhia de seus pais, no distante ano de 1926. Não podendo continuar
com os veraneios na praia de Tibau do Sul, em virtude da cheia de 1924, meus
avós escolheram a Praia da Pipa, poucos quilômetros ao Sul, como substituta.
Desde então, Dona Cirene retornou religiosamente todos os meses de janeiro,
pelos últimos 83 anos.
Tinha
por essa praia um amor incondicional. Seu último veraneio foi em janeiro de
2009, quando sofreu uma isquemia e precisei socorrê-la às pressas, levando-a
para Natal. Foi a mais longa viagem da minha vida, dadas as dificuldades que
enfrentei durante todo o percurso. Depois desse incidente, nunca mais retornou
à praia que tanto amava.Nasceu
no dia 19 de abril de 1923, na cidade de Goianinha-RN. Passou sua infância
entre o verdor dos canaviais que ondeavam o vale do “Engenho Benfica” e a
cidade onde nascera. Como toda criança nascida nos antigos engenhos de
cana-de-açúcar, passava boa parte do dia brincando com os irmãos entre a
bagaceira, a casa das moendas e
as formas de açúcar dispostas na “casa de purgar”.
Carro de bois - Engenho Ilha Grande- Goianinha/RN
Quando
criança, por várias vezes viajou dentro de caçuá em lombo de animal, do
“Engenho Benfica” até a Praia da Pipa, onde passava com a família, o mês de
janeiro. Fazia dupla com seu irmão Antônio (Tio Tonho), que adorava dizer que
eram como irmãos gêmeos. Sendo praticamente da mesma idade, com apenas um ano
de diferença, partilhavam alguns pertences. Um par de alpargatas servia para os
dois. Quando um ia à cidade, o outro, resignado, ficava em casa.
Na
adolescência, já demonstrava uma grande habilidade quando cavalgava do Engenho
a Goianinha, distante poucos quilômetros.
Nos
períodos de férias da Escola Doméstica, onde estudou por vários anos, retornava
ao engenho e, livre da rigidez disciplinar, entregava-se de corpo e alma às
mesmas brincadeiras de menina de engenho. Gostava de “pegar parelha” com os
irmãos em desabaladas corridas no pátio, em frente à casa-grande, onde se lia
no alto em letras graúdas “Vila Elvira”, em homenagem à minha avó, Elvira
Macionila Barbalho. Nessa brincadeira, ela quase sempre saía vencedora, o que
era motivo de zombaria aos que perdiam.Na
época em que as viagens para a Pipa eram feitas a cavalo, mamãe ganhara de meu
avô Odilon Barbalho um cavalo e lhe deu o nome de “Trinta e Um”. Montada em
cilhão, desafiava os irmãos ou primos a disputar corridas ao longo de toda a
viagem.
Vila Elvira - Engenho Benfica- Goianinha/RN
Nas
longas conversas que tivemos, sempre recordava saudosa de momentos felizes de
sua infância. Contava que gostava de procurar ninhos de pássaros nos arvoredos
próximos à casa grande, tomar banho nas tapagens – barragens feitas nas levadas
para aguar os partidos de cana-de-açúcar –, ou simplesmente de contemplar o céu
em dias ensolarados, tentando adivinhar figuras que se formavam nas nuvens de
algodão. À noite, procurava no céu escuro estrelas cadentes para a elas fazer
pedidos ou lhes contar seus segredos de criança. Falava do quintal da casa
grande – cheio de mangueiras, goiabeiras, araçazeiros, laranjeiras e uma
jabuticabeira em que, frequentemente, subia para se esconder dos irmãos, ou
quando queria simplesmente ficar sozinha. Lá mais para o fim do quintal, perto
do rio, touceiras de cana caiana e flor de cuba, onde gostava de chupar seus
roletes molinhos e doces. Ao lado da casa, um grande pé de cajá-manga onde
todas as manhãs reuniam-se sanhaços, xexéus, galos de campinas, canários da
terra e tantos outros pássaros que gorjeavam, saudando o milagre do amanhecer
de mais um dia.
Engenho Benfica - Goianinha/RN
Dizia
que ainda podia sentir o cheiro doce do caldo da cana cozinhando nos grandes
tachos de bronze, para fazer o açúcar mascavo. Logo as lembranças lhe chegavam
com tamanha intensidade que, por diversas vezes, pude observar em seu semblante
que, em devaneios, revivia aqueles momentos, ao tempo em que os pensamentos
voavam para o velho engenho. Falava do rangido das moendas amassando a cana, do
caldo escuro escorrendo para os tanques de armazenamento, do bagaço sendo
transportado pelos animais que, arrastando um couro de boi, levavam para o
pátio o que sobrava das moendas. Quantas vezes, em brincadeiras com outras
crianças, subia naquele couro junto com o monte de bagaço para ser levada
também até o pátio. Recordava-se do feitor que aos berros, dirigia homens e
animais, naquele frenético vai e vem de burros, cambiteiros e puxadores de
bagaço. Lembrava do mestre de açúcar e descrevia seus movimentos precisos,
transportando de um tacho para outro o caldo quente que, cada vez mais apurado,
ia se transformando em açúcar. O cheiro doce do mel de furo escorrendo das
formas de açúcar que descansavam na casa de purgar.
Quando
criança, chegou a morar um tempo na casa do meu pai e seu cunhado, Arnaldo
Barbalho Simonetti, na cidade de Macaíba, recém casado com sua irmã mais velha,
Inaldy Barbalho. Com apenas 11 anos de idade, foi ajudar a irmã que descansara
de seu primeiro e único filho, Dante Simonetti. Quis o destino que tempos
depois, com a morte prematura da irmã, viesse a se casar com Arnaldo, que
também era seu primo legítimo.
No
início de seu casamento morou em São José de Mipibu, onde nasceram três de seus
filhos, inclusive eu. Outros dois nasceram em Natal.
Ela
gostava de recordar o tempo das campanhas políticas, quando em 1947 meu pai
elegeu-se deputado à Assembleia Constituinte.Teve
cinco filhos e foi muito feliz durante cinquenta anos que permaneceu ao lado
daquele homem, treze anos mais velho. Ela o amou e respeitou até o último dia
de sua existência aqui na Terra. Praia da Pipa/RN
Não
gostava de seu nome. Dizia ter sido um viajante, que em passagem pelo engenho,
vendo minha avó grávida, sugeriu o nome. Ela ainda completava: “Que falta de sorte!”
Ultimamente, por brincadeira, eu só a chamava de CIRLENE e ela dizia: “Esse,
sim, é mais bonito!”.A
alegria era sua principal característica que, embora contrapondo com a sisudez
de papai, nunca foi por ele reprimida. Nos veraneios da Pipa, sempre promovia
brincadeiras para distrair a família. Incentivava o roubo de galinhas nas casas
dos parentes e que viravam tira-gostos de uma boa cachaça e animavam os banhos
de mar à luz de lampiões ou em noites de lua clara. Todos os veraneios, volta e
meia, gostava de reunir no alpendre da sua casa amigos e parentes para degustar
seu maravilhoso “arroz doce”, feito com açúcar mascavo.
Como
todo ser humano, também teve suas dores e decepções. A perda do meu pai foi um
grande golpe em sua vida. Tempos depois, perdia dois dos seus amados filhos.
Ninguém deveria sepultar os filhos. A recíproca é verdadeira. O caminho natural
é que os filhos sepultem seus pais. Quando a mão de Deus interfere nessa
trajetória, a dor é incomensurável. Só alguém que a sentiu, pode avaliá-la.
Rogo a Deus, para que nunca me aconteça tal infortúnio.
Nos
últimos 10 anos estive muito presente na vida da minha mãe. Durante esse tempo,
pelo menos em cinco dias da semana, almoçávamos juntos. Após as refeições,
ficávamos a conversar. Ela gostava de lembrar a infância na casa-grande do
Engenho Benfica, dos meses de julho que passava na fazenda “Lagoa Nova”,
propriedade que meu avô possuía no município de Santo Antônio.
D. Cirene em seu alpendre na Pipa/RN
Adorava
cantar e ouvir músicas. Tinha uma grande coleção de CDs e gostava de dormir
ouvindo seus cantores preferidos, dentre eles: Roberto Carlos e Trio Iraquitã.
Declamava poesias aprendidas quando criança nos bancos do Grupo Escolar Moreira
Brandão. Lembro que nos emocionava quando recitava, sem tropeços, a poesia que
mais gostava: “Pássaro Cativo” (Olavo Bilac, 1929). “Arma-se em um galho
de árvore um alçapão e em breve uma avezinha descuidada, batendo as asas cai na
escravidão[...]”.
Depois
da isquemia, ela foi ficando mais calada. Já não tinha a vivacidade de outrora.
Sempre que terminávamos o almoço, pedia para se deitar. Às vezes ficava calada
durante toda a refeição. Eu sempre procurei entendê-la e respeitar aquele
momento, muito embora me doesse profundamente vê-la com o olhar perdido,
mergulhada em seus pensamentos. Entretanto, eu sabia que a minha simples
presença ao seu lado trazia-lhe conforto e segurança. Ficávamos ali, sentados,
em silêncio, até que ela pedisse para se deitar.Ultimamente,
vez por outra, dizia que estava com muita saudade de papai e que tinha sido muito
feliz no casamento. Lembrava dos parentes já falecidos e coisas dessa natureza.
Outras vezes apenas dizia: “Meu filho, estou muito velha e cansada!”. Parece
que Deus, na sua divina sapiência, dota as pessoas, em momentos de suas vidas,
de conformação. A ideia da morte já não as assusta. Inconscientemente, ela
sabia que já tinha cumprido sua missão aqui na Terra.No
último dia 8 de fevereiro ela partiu. Seu semblante era tranquilo e refletia a
paz dos justos. Não se observava em seu rosto qualquer traço de sofrimento.
Dormia como tantas vezes a vi dormir em seu quarto, que há algum tempo tinha se
transformado em seu refúgio preferido. A exemplo de meu pai e meus dois irmão,
foi contemplada com a partida sem sofrimento e hoje está reunida em comunhão com
todos os parentes e amigos, ao lado do Criador.
Obrigado, mãe, pelo amor que nos dedicou, pela
alegria que nos contagiou, pelo exemplo que nos deixou e por todos esses anos
felizes que vivemos ao seu lado.
Parabéns pelo belíssimo texto, Ormuz!
ResponderExcluirParabéns pelo belíssimo texto, Ormuz!
ResponderExcluirParabéns pelo belíssimo texto, Ormuz!
ResponderExcluirparabens pela bela homenagem
ResponderExcluirum abraço
Gustavo Rodrigues
Grande amor, forte e aconchegante saudade. A vida só vale quando bem vivida. Ormuz, você viveu intensamente o seu grande amor materno. Seu coração ainda dói pela separação, mas a certeza da felicidade plena dela agora, ameniza essa distância, por isso digo Feliz Dia das Mães, pois ela no céu acarinha seu coração. Belo texto. Abraço, Jania Souza
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