Pelas Ruas de Natal
Por
Ormuz Barbalho Simonetti
Sócio
efetivo e presidente emérito (2013-2022) do IHGRN
Jornalista,
escritor, genealogista e artesão.
Conselheiro
da Liga de Ensino do Rio Grande do Norte
Esta semana, alterei o caminho habitual
para chegar ao Instituto Histórico e Geográfico do RN, onde, por fazer parte da
administração, dou expediente todas as manhãs. Como precisei deixar minha filha
no trabalho, passei pela rua Segundo Wanderley, que apresentava trânsito
intenso devido ao Colégio das Neves. A lateral da escola fica nessa rua e há
uma entrada bastante utilizada pelos alunos dos primeiros anos, o que causa
longas filas de veículos deixados rapidamente por pais ou responsáveis que
prezam pela segurança dos pequenos.
Enquanto aguardava o trânsito fluir,
minha filha, sentada ao meu lado, chamou minha atenção: “Olha, um orelhão!”
Virei o rosto e, de fato, lá estava ele. Solitário no entroncamento das ruas
Segundo Wanderley com Ana Medeiros, passava despercebido por muitos, mas não
por nós. Resistia ao tempo como um velho guerreiro, testemunho silencioso de
uma época não tão distante, mas fundamental para a comunicação humana.
Sua antiga cor azul-escuro estava
desbotada, camuflada entre os muros gastos das casas próximas. Ainda assim,
havia algo nele de digno, altivo — como um idoso que se recusa a desaparecer,
aguardando ser notado. Pedi à minha filha que o fotografasse. Depois, ao
observar as imagens em casa, senti-me inspirado a escrever sobre aquele
solitário orelhão.
Curiosamente, as fotos haviam sumido do
meu celular. No domingo seguinte, aproveitando a tranquilidade da rua deserta,
retornei e fiz novas imagens. Durante esse momento, um casal que passeava com
seu cachorro me informou o nome da rua adjacente. Conversando, percebi algo
inusitado: sob o bojo do orelhão, havia um par de sapatos masculinos usados. Em
cima, um par de sandálias do tipo que, nos anos 60, chamávamos de “sandália
japonesa” — termo que ainda uso.
O casal contou que é comum moradores
deixarem ali calçados para quem precise. Um gesto de solidariedade simples,
quase anônimo. Achei encantadora essa nova função dada ao velho aparelho
telefônico, agora transformado em ponto de doação espontânea.
Os orelhões foram criados pela estilista
e arquiteta sino-brasileira Chu Ming Silveira. O formato oval da cápsula foi
escolhido por sua eficiência acústica, alcançando de 40 a 90 decibéis. O
primeiro protótipo, feito em acrílico, surgiu em 1971 em São Paulo. Mas os
primeiros aparelhos disponíveis ao público foram instalados no Rio de Janeiro
em 20 de janeiro de 1972 — dia de São Sebastião, meu santo de devoção.
Durante o tempo em que morei no Rio,
usava orelhões com frequência, especialmente nos fins de semana, já que,
durante a semana, dispunha dos telefones do Banco do Brasil, onde trabalhava.
Lembro-me de um orelhão na esquina da Rua Bambina, em Botafogo. Era comum haver
fila. Em uma dessas ocasiões, notei um rapaz usando uma ficha presa por um fio
de náilon quase invisível. Ele realizava a chamada e, ao final, puxava a ficha
de volta. Vi essa cena mais de uma vez — um exemplo clássico da “esperteza”
carioca.
Soube também, por um colega do banco, que
os orelhões recém-instalados passavam por um período de testes de 15 a 20 dias.
Nesse intervalo, com apenas uma ficha, era possível fazer ligações interurbanas
e até internacionais. Em São Paulo, onde iniciei minha carreira bancária, os
orelhões em grupo eram apelidados de "tulipas". Brasileiro adora dar
apelidos às coisas.
No entanto, com o tempo, surgiram
problemas: falta de conservação, vandalismo e a dificuldade de monitoramento
levaram à deterioração dos aparelhos. Em resposta, a agência Dpz criou em 1980
o icônico comercial “A Morte do Orelhão”, que usava elementos da crônica
policial para sensibilizar a população sobre a violência urbana e a perda
daquele símbolo.
Apesar de tudo, os orelhões marcaram
gerações. Quantos namoros começaram ali? Quantas boas e más notícias foram
compartilhadas sob aquela concha acústica que, por instantes, isolava os
usuários do mundo ao redor?
A história dos telefones públicos no
Brasil começou em 1920, com aparelhos semi-públicos instalados em
estabelecimentos comerciais sob contrato com a Companhia Telefônica Brasileira
(CBT), de capital canadense. Em 2001, o Brasil alcançou o pico com 1.380.000
orelhões. Mas, com o avanço dos celulares e a privatização da telefonia em
1998, esse número despencou mais de 90%. Em 2023, ainda havia 106 mil orelhões
no país — poucos funcionais.
As fichas desapareceram em 1992, substituídas
pelos cartões telefônicos, cuja venda caiu drasticamente: de 11 milhões em 2015
para apenas 21 mil em 2022. A obrigatoriedade de instalação foi retirada em
2019 pela Lei n. 13.879. Ainda assim, em agosto de 2024, a Anatel aprovou nova
norma exigindo que empresas de telefonia fixa mantenham alguns aparelhos
funcionando até 2026, embora sem esclarecer como ou quantos.
Mesmo quase obsoletos, os orelhões seguem importantes em áreas remotas do Brasil. Testemunhas silenciosas de um tempo em que a comunicação exigia espera, ficha e presença física. Que bom que, em uma esquina de Natal, um velho orelhão ainda resiste — não mais como um instrumento de voz, mas como um símbolo de memória e solidariedade.
MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA NR. 83 – ABR/JUN - DA ACADEMIA NORTE-RIGRANDENSE DE LETRAS DO RIO GRANDE DO NORTE.
Link para acessar o filme “A Morte do Orelhão”:
https://youtu.be/ELYDLqxkakA?si=YX5YkLkvlRO9Zpqt)
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