terça-feira, 15 de julho de 2025

PELAS RUAS DE NATAL - HISTÓRIA E ESTÓRIAS DO ORELHÃO

  

Pelas Ruas de Natal

 

 

Por Ormuz Barbalho Simonetti

Sócio efetivo e presidente emérito (2013-2022) do IHGRN

Jornalista, escritor, genealogista e artesão.

Conselheiro da Liga de Ensino do Rio Grande do Norte

 

Esta semana, alterei o caminho habitual para chegar ao Instituto Histórico e Geográfico do RN, onde, por fazer parte da administração, dou expediente todas as manhãs. Como precisei deixar minha filha no trabalho, passei pela rua Segundo Wanderley, que apresentava trânsito intenso devido ao Colégio das Neves. A lateral da escola fica nessa rua e há uma entrada bastante utilizada pelos alunos dos primeiros anos, o que causa longas filas de veículos deixados rapidamente por pais ou responsáveis que prezam pela segurança dos pequenos.

Enquanto aguardava o trânsito fluir, minha filha, sentada ao meu lado, chamou minha atenção: “Olha, um orelhão!” Virei o rosto e, de fato, lá estava ele. Solitário no entroncamento das ruas Segundo Wanderley com Ana Medeiros, passava despercebido por muitos, mas não por nós. Resistia ao tempo como um velho guerreiro, testemunho silencioso de uma época não tão distante, mas fundamental para a comunicação humana.

Sua antiga cor azul-escuro estava desbotada, camuflada entre os muros gastos das casas próximas. Ainda assim, havia algo nele de digno, altivo — como um idoso que se recusa a desaparecer, aguardando ser notado. Pedi à minha filha que o fotografasse. Depois, ao observar as imagens em casa, senti-me inspirado a escrever sobre aquele solitário orelhão.

Curiosamente, as fotos haviam sumido do meu celular. No domingo seguinte, aproveitando a tranquilidade da rua deserta, retornei e fiz novas imagens. Durante esse momento, um casal que passeava com seu cachorro me informou o nome da rua adjacente. Conversando, percebi algo inusitado: sob o bojo do orelhão, havia um par de sapatos masculinos usados. Em cima, um par de sandálias do tipo que, nos anos 60, chamávamos de “sandália japonesa” — termo que ainda uso.

O casal contou que é comum moradores deixarem ali calçados para quem precise. Um gesto de solidariedade simples, quase anônimo. Achei encantadora essa nova função dada ao velho aparelho telefônico, agora transformado em ponto de doação espontânea.

Os orelhões foram criados pela estilista e arquiteta sino-brasileira Chu Ming Silveira. O formato oval da cápsula foi escolhido por sua eficiência acústica, alcançando de 40 a 90 decibéis. O primeiro protótipo, feito em acrílico, surgiu em 1971 em São Paulo. Mas os primeiros aparelhos disponíveis ao público foram instalados no Rio de Janeiro em 20 de janeiro de 1972 — dia de São Sebastião, meu santo de devoção.

Durante o tempo em que morei no Rio, usava orelhões com frequência, especialmente nos fins de semana, já que, durante a semana, dispunha dos telefones do Banco do Brasil, onde trabalhava. Lembro-me de um orelhão na esquina da Rua Bambina, em Botafogo. Era comum haver fila. Em uma dessas ocasiões, notei um rapaz usando uma ficha presa por um fio de náilon quase invisível. Ele realizava a chamada e, ao final, puxava a ficha de volta. Vi essa cena mais de uma vez — um exemplo clássico da “esperteza” carioca.

Soube também, por um colega do banco, que os orelhões recém-instalados passavam por um período de testes de 15 a 20 dias. Nesse intervalo, com apenas uma ficha, era possível fazer ligações interurbanas e até internacionais. Em São Paulo, onde iniciei minha carreira bancária, os orelhões em grupo eram apelidados de "tulipas". Brasileiro adora dar apelidos às coisas.

No entanto, com o tempo, surgiram problemas: falta de conservação, vandalismo e a dificuldade de monitoramento levaram à deterioração dos aparelhos. Em resposta, a agência Dpz criou em 1980 o icônico comercial “A Morte do Orelhão”, que usava elementos da crônica policial para sensibilizar a população sobre a violência urbana e a perda daquele símbolo.

Apesar de tudo, os orelhões marcaram gerações. Quantos namoros começaram ali? Quantas boas e más notícias foram compartilhadas sob aquela concha acústica que, por instantes, isolava os usuários do mundo ao redor?

A história dos telefones públicos no Brasil começou em 1920, com aparelhos semi-públicos instalados em estabelecimentos comerciais sob contrato com a Companhia Telefônica Brasileira (CBT), de capital canadense. Em 2001, o Brasil alcançou o pico com 1.380.000 orelhões. Mas, com o avanço dos celulares e a privatização da telefonia em 1998, esse número despencou mais de 90%. Em 2023, ainda havia 106 mil orelhões no país — poucos funcionais.

As fichas desapareceram em 1992, substituídas pelos cartões telefônicos, cuja venda caiu drasticamente: de 11 milhões em 2015 para apenas 21 mil em 2022. A obrigatoriedade de instalação foi retirada em 2019 pela Lei n. 13.879. Ainda assim, em agosto de 2024, a Anatel aprovou nova norma exigindo que empresas de telefonia fixa mantenham alguns aparelhos funcionando até 2026, embora sem esclarecer como ou quantos.

Mesmo quase obsoletos, os orelhões seguem importantes em áreas remotas do Brasil. Testemunhas silenciosas de um tempo em que a comunicação exigia espera, ficha e presença física. Que bom que, em uma esquina de Natal, um velho orelhão ainda resiste — não mais como um instrumento de voz, mas como um símbolo de memória e solidariedade. 

MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA NR. 83 – ABR/JUN - DA ACADEMIA NORTE-RIGRANDENSE DE LETRAS DO RIO GRANDE DO NORTE.


Link para acessar o filme “A Morte do Orelhão”:

 https://youtu.be/ELYDLqxkakA?si=YX5YkLkvlRO9Zpqt)

 

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