sexta-feira, 20 de abril de 2012

PIPA, TERRA DE NINGUÉM – Parte II


Uma noite tranquila é direito de todos




          No sábado de aleluia a Pipa foi palco de uma situação que além de inusitada, arrisco a afirmar não ter precedente em nenhum lugar onde convivam pessoas com um mínimo de civilidade. Para que o Padre pudesse celebrar a Santa Missa, já que uma das casas alugadas fica ao lado da Igreja, foi preciso que a polícia se posicionasse ostensivamente em frente à residência e negociasse com os seus integrantes, o desligamento provisório do som, pelo menos enquanto durasse a celebração. Mesmo assim, antes do término da missa, o som retornara com toda sua potência.

          Nos Estados de origem da maioria desses vândalos, Pernambuco, Paraíba e Ceará, tenho certeza que esse tipo de comportamento, além de não ser permitido, seria rechaçado pela população e pela própria polícia, seguramente, com respaldo das autoridades locais, fazendo-se presente e coibindo esse comportamento marginal. Certamente, alguns potiguares que participavam dessa orgia, também fazem parte desse acinte.

No Rio Grande do Norte e principalmente na praia da Pipa, ao que parece, tudo pode. E, com base nessa premissa, eles sempre estão de volta. No próximo feriadão, lá estarão novamente promovendo todo tipo de desordem e afrontando as famílias que tiveram a infelicidade de ter suas casas de veraneio na praia da Pipa, ultimamente, terra de ninguém. 

          Nós, veranistas e assíduos frequentadores dessa praia, já pagamos nossa cota de sacrifício, quando somos obrigados a conviver com um trânsito caótico, sem regras nem orientação. A ausência do poder público municipal é gritante. Os carros são estacionados ao bel prazer dos motoristas, muitas vezes estimulados por “flanelinhas” que no afã de ganhar alguns trocados, interrompem o trânsito com estacionamentos irregulares, principalmente quando são feitos em frente a garagens. O pior é que não temos a quem recorrer. Muitas vezes já fui impedido de sair de minha garagem, por haver um carro estacionado de forma irregular, e o proprietário em local ignorado.

          Na parte baixa da praia, onde se concentra a maioria dos carros, não existe e nem nunca existiu, nenhum servidor municipal para organizar o estacionamento e o fluxo dos veículos. Tudo é feito na base do “salve-se quem puder” e sob orientação dos “flanelinhas”. O turista que tiver a desventura de chegar à praia da Pipa por volta do meio dia dirigindo seu próprio veículo, certamente não levará boas recordações e irá pensar duas vezes, antes de retornar numa outra oportunidade.

           Quando não cuidamos de nossa própria casa, sempre aparece alguém para exercer esse “direito”. A liberdade aos poucos vai sendo retirada, sem que reclamemos ou protestemos até que um dia descobrimos que nada podemos dizer. É preciso despertar. Lembro-me do poeta Eduardo Alves da Costa, autor de alguns dos maiores e mais belos poemas da língua portuguesa, publicado na década de 60. Peço vênia, para citar fragmento do poema: No Caminho, com Maiakóvski.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada”.

E aqui fica a pergunta que não quer calar: é esse o Estado que se diz apto a receber a Copa do Mundo? Talvez tenhamos que pagar um alto preço pela vergonha do fiasco que poderá estar por vir. Como dizem ser o tempo o senhor de tudo, só ele será capaz de responder a esse questionamento.

Quem viver, verá.








sexta-feira, 13 de abril de 2012



PIPA, TERRA DE NINGUÉM – Parte I

Uma noite tranquila é direito de todos

         Há anos que o um dos mais famosos balneários do Brasil, a praia da Pipa, vem convivendo com um problema recorrente, e aparentemente sem solução. Quando acontece grandes feriados, horda de jovens, na sua grande maioria, procedentes de outros Estados, desembarca na praia da Pipa com o propósito de diversão a qualquer custo e a nítida intenção de transgredir a Lei e a Ordem pública.
         Foi o que aconteceu no último feriado da Semana Santa. Apenas três casas foram alugadas pelos seus proprietários, porém, o suficiente para deixar toda a parte baixa da praia, onde se concentra a maioria das casas de veraneio, em polvorosa.
         Quando acontecem esses aluguéis, os contratantes tratam diretamente com os proprietários e depois vendem os ingressos aos que desejarem participar da “festa”. Geralmente casas que comportariam de doze a quinze pessoas, são acomodadas, se é que podemos chamar de acomodação, até setenta indivíduos em sua maioria, constituída por jovens de ambos os sexos.
         Munidos de equipamentos de som de alta potência, são ligados em todo o volume o que resulta num verdadeiro pandemônio. Nessas casas, para chamar a atenção, são colocadas faixas e cartazes com palavras obscenas e algumas exibem, com pequenos disfarces, a genitália masculina, indicando ser ali a Casa de todos. Não fosse esse cronista de página limpa, tentaria levar o leitor a identificar o verdadeiro nome.
         Dentro delas a visão é estarrecedora. Homens e mulheres se entregam a uma orgia sem precedente. O álcool comanda o ambiente e dita o ritmo da festa. As mulheres, normalmente mais vulneráveis aos efeitos das bebidas alcoólicas, são as que mais se destacam e se exibem. Em notória degradação de sua dignidade, convidam, através de musiquetas com cunho sexual, cantadas em coro, futuros parceiros, com se fossem mercadoria em liquidação. Numa verdadeira afronta as famílias que residem nas adjacências, bem como aos turistas, palavrões de toda espécie são recitados em alto e bom som, independentemente de quem estiver passando nas imediações. Famílias quando acompanhadas de menores, se apressam para escapar daquele ambiente de permissividade comportamental e promiscuidade social e moral.
         Quando a noite chega os grupos continuam no mesmo ritmo que iniciaram, porém, a embriaguez já tomou conta da maioria dos participantes. E assim continuaram durante todo o feriado. Enquanto alguns dormem, obviamente, vencidos pelo cansaço misturado ao estado de embriaguez, outros continuam na farra, de maneira que o som permaneça ligado no último volume.
         É notória a indolência do poder público Municipal e principalmente a ausência do Estado, com relação ao policiamento, já que este é de competência do Governo Estadual. O efetivo responsável pela manutenção da ordem e da lei, em todo o balneário, é de apenas três homens. Segundo especialista em segurança pública, em razão das características e peculiaridades da praia da Pipa, esse número seria de no mínimo, dez homens para atender a demanda, principalmente durante os feriados prolongados. Imagine, meu caro leitor, o que é passar a noite fazendo rondas, solucionando conflitos dos mais diferentes níveis sem que o Estado lhes ofereçam as condições necessárias ao bom desempenho de suas funções constitucionais. É um caos. E mais. Há relatos de que as gratificações prometidas para o período do veraneio, ainda não foram lançadas nos contracheques dos valorosos militares.  
         Além do mais, pergunta o Agente, o que poderia fazer o policial para coibir esse tipo de abuso? Sem o apoio do Judiciário e do Ministério Público, seus poderes são altamente limitados. Questiona-se.
E foi o que aconteceu. Quando o policial ao se aproximar da residência para solicitar que o som fosse diminuído, um dos participantes o admoestou: “se não tem mandado a conversa é do portão pra fora”. De antemão, o policial sabe que dentre aquelas pessoas, existem vários advogados “com notórios saber jurídico” que conhecem bem “seus direitos”, mas infelizmente usurpam, ofendem e fazem menoscabo com os direitos alheios. Temendo a desmoralização, o agente da lei procura através de conversa, em sua maioria sem êxito, convencê-los a atender o clamor da população e pelo menos diminuir o volume do som, para que principalmente idosos e crianças possam dormir em paz.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
         Mesmo se os moradores-veranistas quisessem usar do direito assegurado no art. 42, III da Lei das Contravenções Penais, iriam até a Delegacia de Policia Civil e fariam um Termo Circunstanciado de Ocorrência, objetivando a solução do conflito. Ocorre, porém, que na Delegacia de Policia Civil da praia da Pipa, tem apenas um agente e, pasmem, sem viatura. Nesse caso, não restaria nenhuma outra solução a não ser reclamar ao Senhor Bispo, Dom Jaime, representante de Deus entre os homens. 
Diferentemente, na praia de Pirangí acontecia problema semelhante. Mas, ao que pude apurar, as autoridades competentes dotaram, os policiais de instrumentos legais, previstos em nossa Constituição, para que pudessem ser utilizados no cumprimento da lei. Munidos de Mandado Judicial, aos policiais era permitido adentrar ao ambiente e apreender o equipamento de som que estivesse em desacordo com a legislação, caso o infrator se recusasse a cumprir o que determina a lei.   
                                                                        Solicitamos aos leitores que se manifestem a respeito da matéria para que possamos pressionar as autoridades competentes.

terça-feira, 3 de abril de 2012

CENAS URBANAS - Crianças Invisíveis

O Tráfego fluia normalmente.
Os veículos desfilam imponentes. A paisagem se descortina generosa. Os mundos se dividem nos limites dos vidros que abrem e fecham automaticamente ao leve toque dos motoristas. Lá fora um calor escaldante exaure as pessoas. Ali dentro uma amena temperatura aconchega o ambiente.

O sinal fecha. Rangidos de freios ecoam no ar. Como surgidos do nada, um pequeno exército de pessoas muda a paisagem. São vendedores ambulantes, mendigos, aleijados arrastando-se no asfalto, crianças famintas que mal balbuciam um pedido ininteligível de uma moeda, velhos e suas mãos tremulando no vazio, malabaristas e acrobatas que disputam a atenção e alguns trocados dos motoristas e passageiros.

Os dois mundos se encontram. Perplexidade e indiferença são sentimentos conflitantes e a ação, um ato constrito. O “levantar” dos vidros dos luxuosos carros substituem os limites da humanidade. Os olhos cravados no semáforo inibem, propositalmente, o contraste do momento.

O sinal abre. Tudo se movimenta e os mundos voltam a se separar. Pelo retrovisor, o olhar faminto da criança parece distante. Apenas parece, pois, num passe de mágica, no próximo sinal, a cena se repete. Como poderia aquela criança está aqui novamente. Não, ela não está! É outra criança. São outras crianças espalhadas por todos os semáforos das ricas avenidas da cidade. A pobreza não tem várias faces, semblantes diferentes. Todas parecem miseráveis, sujas, abandonadas, iguais. Todas são iguais em suas carências, em sua ânsia desesperada de misericórdia, em seus mudos lamentos.

O sinal abre. E reabre. E, em cada um deles, todos os dias, as muitas cenas urbanas se repetem no contraste das desigualdades.

O tempo passa. Sinais abrem e fecham sem parar. As distâncias entre os mudos: pobre e rico, aumentam sem parar.

Certo dia, em um dos muitos semáforos do seu caminho habitual, aquele indiferente motorista se depara com uma pequena aglomeração em torno de um cadáver postado na pista. A polícia algemara um jovem, quase criança. O motorista olhou com um pouco mais de atenção e deparou-se com um rosto conhecido. Indignado pensou:

- Meus Deus, era um daqueles garotos que mendigavam no semáforo da avenida Roberto Freire, há tão pouco tempo. Nunca mais o tinha visto. Que marginal, como pode a maldade humana chegar a esse ponto. Acabar com a vida de alguém sem qualquer motivo. Ainda bem que eu nunca me dispus a ajudar a nenhum deles.
O corpo jazia inerte.

Logo aquela vida seria apenas um desenho no asfalto.

Para aquele jovem, preso e algemado, a vida sempre fora um desenho, um mal acabado esboço colorido com as frustrantes tintas dos descasos e desmandos do poder constituído e da indiferença social. No meio da pequena multidão, alguém mais exaltado, falava de dignidade humana.

Imagine, alguém, repentinamente, lembrar da dignidade humana como se ela fosse apenas uma palavra.  E como falamos em dignidade humana. Mas, o que é dignidade humana?

(Cena Urbana, texto de autoria de Adauto José de Carvalho Filho, Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil Aposentado, Bacharel em Direito, escritor e poeta)

sexta-feira, 16 de março de 2012

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA . . .





O ditado é antigo, embora muitos ainda insistam em não levá-lo a sério e paguem caro por isso. Nesse caso específico, quem está pagando mais uma vez somos nós, indefesos contribuintes. Há anos que assistimos o nosso dinheiro ser literalmente jogado no mar. Na melhor das hipóteses, por incompetência dos nossos administradores ou, propositalmente, para que os serviços “ rendam um pouco mais”.
Embora não tenha formação em Engenharia, basta ser bom observador para constatar que os muros de arrimo construídos nas praias de nossa capital, com o intuito de proteger os calçadões contra a força das vagas nas grandes marés, não irão funcionar a contento, pois lhes falta um importante complemento para evitar um impacto das ondas diretamente no muro de arrimo.
O pouco espaço existente entre a preamar e os calçadões de nossas praias elimina qualquer possibilidade de construção de um “dissipador de energia” – bastante utilizado em outros Estados e com bons resultados, desde que exista espaço suficiente para sua edificação.
A construção do muro de arrimo poderá surtir efeito desejado, desde que seja complementada com a técnica do sistema de gabião, a exemplo do que vem sendo largamente utilizado nas casas de veraneio na Praia da Pipa, com excelentes resultados até os dias de hoje.
A complementação ao muro de arrimo ao sistema gabião – estruturas armadas, flexíveis, drenantes de grande durabilidade e resistência – as quais teriam entre 1,5 e 2 metros de largura, eliminaria definitivamente a destruição desses calçadões. Nos gabiões tradicionais são utilizadas telas de ferro galvanizado para acomodar as pedras, porém, nesse caso, por tratar-se de beira de praia, eles seriam construídos com toras de madeira de lei fixadas no solo e traspassadas horizontalmente com a mesma madeira, de menor espessura, ponteadas com varões de aço inoxidável, que têm grande durabilidade.
Essa grande “caixa de pedras” teria a função de amortecer o impacto das ondas, mesmo as de maior intensidade que, ao se chocarem com a caixa, apenas movimentariam pedras soltas que logo se acomodariam, evitando, assim, qualquer impacto direto no muro principal. Além disso, ainda teria a função de passeio, pois bastaria cobri-la com tábuas de assoalho em toda a largura e extensão, para aumentar o calçadão original.
Sabemos, por experiência própria, que o principal causador da destruição desses muros de arrimo feitos para conter a força das águas é, sem dúvidas, o seu próprio peso. No instante em que surge a primeira fissura ocasionada pelo impacto incessante das ondas, é exatamente o peso dessas estruturas que, convergindo para o mesmo ponto, contribui e apressa o desmoronamento da mesma.
Há vários anos, na Praia da Pipa, onde tenho uma casa de veraneio que é constantemente assolada pelas ondas por ocasião da preamar, fui responsável pela construção de pelo menos meia dúzia desses gabiões, inclusive o de minha casa. Alguns deles já contam mais de 15 anos. Até hoje, continuam exercendo sua função de conter a força das ondas, principalmente nas grandes marés, sem que estas tenham causado o menor dano às estruturas protegidas.
Certa vez, um grande navio encalhou próximo à Praia da Redinha, quando tentava manobra naquelas águas. Por várias semanas, rebocadores tentaram desencalhá-lo, porém, sem sucesso. Técnicos vindos da Alemanha, contratados pela empresa proprietária do navio, também estiveram no local e, entretanto, não conseguiram desencalhar a nave, que permanecia abatida, presa nas traiçoeiras areias submersas da Praia da Redinha. Na beira mar, um velho pescador,
sentado em um tronco de coqueiro, observava toda aquela movimentação. Pitando um cigarro de fumo de rolo, consertava sua rede de pesca. Suas mãos enrugadas trabalhavam com impressionante agilidade, enquanto seus olhos permaneciam fixos na embarcação encalhada. Em dado momento, comentou com um companheiro: “sei como desencalhar aquele navio”. A notícia chegou aos ouvidos do comandante da operação que, apesar de incrédulo, mandou chamar o “velho lobo do mar” para ouvir suas explicações. Este, numa simplicidade quase ingênua, disse: “Doutor, comece a esvaziar os tanques lastros – compartimentos especiais dos navios que se enchem de água para lastrear a embarcação quando sua carga é muito leve –, que quando a maré tiver na preamar, os rebocadores conseguem puxar o navio”. Na madrugada daquele mesmo dia, o navio foi desencalhado sem maiores problemas. Portanto, na maioria das vezes, as soluções estão nas coisas mais simples e baratas. Basta ouvir um pouco a população e tirar proveito de suas experiências.

Natal, março de 2012.

quinta-feira, 1 de março de 2012

CARTA AO AMIGO – NOTÍCIAS DA PIPA (Segunda parte)

Praia da Pipa - RN

Cheguei a Praia da Pipa, no dia 1 de janeiro, para iniciar o meu sexagésimo primeiro veraneio. Alguns veranistas aqui já se encontravam, pois vieram passar a virada do ano. Todos os finais de ano, jovens de vários Estados da federação e também de outros países, aqui aportam para passar o réveillon, o que transforma a praia num verdadeiro formigueiro humano. Quando os últimos minutos em que o ano velho agoniza, milhares de pessoas acorrem à beira da praia, para ver o espetáculo da queima de fogos. Essa grande concentração humana cria uma visão telúrica quando é iluminada pelo lume vindo dos fogos de artifício, disparados de cima do Morro de Vicência Castelo, ao tempo em que cria uma visão de rara beleza cênica.

Quando retornava da caminhada comecei a avaliar o que havia sido o meu veraneio até aquele dia. Nesses últimos 24 dias, consegui ler dois livros: um romance e outro de memórias. Fiz também inúmeras fotos de diversos locais da praia, destinadas à ilustração do livro sobre a Pipa.

Quando passava pela Praia do Porto, já alcançando as primeiras casas da Praia do Centro, observei a casa do saudoso Maurínio Sena. Depois que ele nos deixou, pouca coisa foi feita naquele velho casarão de tantas lembranças, e que na década de 70 pertenceu ao mestre carpina Francisquinho.


Casa de Maurínio Sena

Continuei minha caminhada e, em frente à Pedra do Santo, como a maré estava bem seca, pouca água havia em seu redor. Ao me aproximar, pude verificar restos de antigos pedestais tombados em épocas passadas e que repousavam submersos nas águas que, de tão transparentes, possibilitava vê-los em detalhes. Esses pedestais abrigavam no seu cimo a imagem de São Sebastião, que é padroeiro do Rio de Janeiro, sua cidade, e também de nossa pequena comunidade. Foram derrubados pelas violentas marés de janeiro. Sempre que ocorre a queda desses pedestais, outro é erguido em seu lugar e a imagem do Santo padroeiro retorna impávido ao seu lugar de origem. Em 2004, pagando promessa, tive a oportunidade de erguer um desses pedestais. Este se manteve até o ano passado.




Restos da casa de Odilon Barbalho

Desse mesmo local, olhando no sentido das casas, a imaginação me levou aos anos passados de minha infância. Pude ”ver”, com os olhos da memória, a casa de meu avô Odilon Barbalho, tal qual era naquela época. Restos da velha construção ainda permaneciam espalhados e meio encobertos pela areia da praia, dando testemunho de que um dia, naquele local, existiu uma das casas mais alegres que conheci. No alpendre apoiado por esteios de pau ferro, as redes armadas balançavam ao sabor do vento. Lá estavam algumas peças de roupa estendidas que tremulavam sem parar, presas em uma corda de agave (sisal) que traspassava de um esteio a outro. Quase cheguei a “ouvir” pessoas conversando alegremente naquele alpendre dos meus devaneios.






















Pousada localizada no antigo quintal da casa de Odilon Barbalho


Segui em frente. Observei casas de antigos veranistas, hoje transformadas em
restaurantes e hotéis. Esqueci um pouco o passado e cheguei à casa do meu irmão Dante Simonetti. Como de costume, subi até seu alpendre e aceitei, de bom grado, uma cerveja bem gelada, gentilmente oferecida por sua esposa e minha prima, Azelma Barbalho.


































Antiga casa de Célio Carvalho



Do seu alpendre, pude ver algumas casas de finados veranistas, atualmente ocupadas por seus descendentes, o que antigamente, em nossa família, era um processo natural – de pai para filhos. Porém, hoje, são exceções. Eles apenas têm conseguido, até então, resistir às ofertas tentadoras trazidas pela especulação imobiliária dos últimos tempos.




Antiga casa de Hilton Lisboa



Antiga casa de Felipe Ferreira




Atual casa de Dante Simonetti

Vi, também, quase escondida por entre tambores de lixo e grades de bebidas colocadas indevidamente no passeio público, a casa de minha querida e saudosa mãe. Gosto de passar em frente. Uma mistura de saudade e melancolia se apodera da minh’alma de maneira avassaladora e as lembranças me remetem aos dias em que conversávamos naquele alpendre ou, simplesmente, fazíamos companhia um ao outro.



Casa de D. Cirene Simonetti


Casa de D. Cirene Simonetti


Sempre me vem à mente sua imagem: deitada em uma rede feita do mais puro algodão do Seridó, estrategicamente armada ao lado Sul do alpendre, de onde o vento sudoeste sopra com mais intensidade nas manhãs abafadas de janeiro. De lá, ela podia, sem maior esforço, solicitar da barraca em frente os petiscos de que mais gostava: camarão no alho e óleo, tainha à milanesa ou uma boa posta de cavala bem acebolada, tudo regado a um bom suco de caju ou, ainda, por suculentas mangabas colhidas nos tabuleiros que, bem cedinho, eram trazidos pela costumeira vendedora. Nesse local, também passava o vendedor de castanha de caju. Embora proibida de comê-las, comprava a guloseima às escondidas. Enfiava tudo no bolso do robe e, aos poucos, sem que ninguém percebesse, devorava uma a uma. Nos lábios, aquele sorriso maroto de quem está fazendo algo proibido. Quando percebíamos a travessura, fazíamos vista grossa e ela ficava toda prosa achando que havia nos enganado. Que saudade!!! Tenho certeza de que essas recordações irão me acompanhar enquanto eu viver. São boas lembranças e eu gosto de tê-las, pois me ajudam a continuar. Jamais me permitirei olvidar de tão preciosas lembranças.

Cheguei a nossa casa e tudo continuava como no dia anterior. Afinal, os veraneios, atualmente, pouco lembram os de outrora, quando somente a família Barbalho/Simonetti veraneava por aqui. O convívio familiar era muito intenso. Não se trata de egoísmo, apenas de um incontrolável saudosismo. Saudade de um tempo quando éramos felizes e sabíamos, mesmo sem que percebêssemos a verdadeira dimensão dessa felicidade. Entretanto, nem tudo está totalmente perdido: quando a noite cai e as areias são envolvidas com seu manto negro, a praia volta às origens. Livre do frenesi de turistas e vendedores ambulantes, ela mergulha no mesmo silêncio de antigamente.

Os turistas e ambulantes já se deslocaram para a “Rua de Cima” onde se concentra os bares, restaurantes e boates. É esse momento sublime que eu gosto de apreciar. Da minha varanda contemplo a velha Pipa por inteiro entregue a exuberância da natureza, iluminada por estrelas ou pelo clarão das noites de lua cheia, quando esta se ergue por trás do morro Vicência Castelo.

Casa de Ormuz Simonetti

O silêncio nos permite escutar o murmúrio das ondas, o som característico do balançar das palhas dos coqueiros açoitadas pelo vento e a inevitável lembrança de velhas canções cantadas em serenatas.

Pois é caro amigo, a nossa praia mudou. O progresso trouxe melhorias, principalmente para os nativos, entretanto é enorme o preço pago pela comunidade. Todavia, suas belezas naturais continuam irretocáveis, principalmente para quem a olha com os olhos de antigamente.

Aqui me despeço, desejando-lhe saúde, ao tempo que renovo o convite para novamente nos visitar. Peço desculpa pelo relato um tanto saudosista, mas espero que tenha estimulado sua curiosidade. Até outra oportunidade ou quando a saudade me lavar a essa bela cidade, onde passei bons anos de minha vida.

Pipa, 26 de janeiro de 2012.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CARTA AO AMIGO – NOTÍCIAS DA PIPA (Primeira parte)



Foi com imensa alegria que ontem, dia 24, recebi uma ligação telefônica de um amigo, de quem há anos não tinha notícia. Ele informou ter-me localizado através do blog (www.ormuzsimonetti.blogspot.com), quando navegava pela Internet, fazendo um tour pelas praias no Nordeste – um dos seus passatempos preferidos. Leu algumas das minhas crônicas sobre a Praia da Pipa e resolveu entrar, de imediato, em contato comigo.

Em 1988, aqui esteve, quando visitava o Rio Grande do Norte. A meu convite, passou alguns dias em nossa casa na Pipa, tempo suficiente para lhe apresentar a praia de Norte a Sul.

Ficou encantado com a geografia do lugar. Naquela época a praia, ainda um tanto “selvagem”, transmitia àquele carioca, que até então só conhecia as praias de sua região, ares de mistério e aventura. A beleza das falésias, a alvura da areia em contraste com a cor negra dos arenitos ferruginosos, a calidez das águas e sua infinita transparência lhe deixaram deveras impressionado.

Decorridos alguns minutos de animada conversa em que tivemos a oportunidade de reviver velhas lembranças da época que trabalhamos juntos no Banco do Brasil em sua cidade, percebi que havia uma mistura curiosidade e saudade do tempo em que nos visitou, e que essas reminiscências continuavam bem vivas em sua memória. Ao se despedir, cantarolou um trecho da música “Samba em Orly”, de Chico Buarque de Holanda, em alusão aos “anos de chumbo”, época em que participávamos de movimentos estudantis na Cinelândia: “...Vê como é que anda aquela vida à toa e se puder me mande uma notícia boa”. Antes que desligasse o telefone, fez-me prometer que lhe escreveria contando mais notícias desse paraíso – como classificou nossa praia.





Praia da Pipa, 25 de janeiro de 2012.

Meu caro amigo,

Como prometi, seguem notícias desse veraneio, já quase no apagar das luzes, na nossa velha e querida Praia da Pipa.

A quarta-feira iniciava com uma manhã morna e preguiçosa, não obstante as chuvas caídas durante madrugada, anunciando o final da temporada do veraneio de 2012. A maré de vazante mostrava-se ideal para uma caminhada. A preamar tinha ocorrido às 4:56h e a baixa-mar estava prevista para às 11:02h. Lá pelas 10h da manhã, como de costume, minha esposa, uns amigos e eu saímos para fazer nossa caminhada diária. Rumamos para o Norte, em direção à praia do “Curral do Canto”, hoje mais conhecida como “Baía dos Golfinhos”, pois sabíamos que o tempo para ir e voltar seria suficiente até que as águas da maré enchente encobrissem as pedras espalhadas no caminho entre as praias do Porto e do Curral do Canto.

Nesses locais, quando a maré enche, as pedras ficam encobertas pela água, criando grande dificuldade para transpô-las. Quando isso ocorre, não raro alguém sofre pequenos machucados.

Ao contrário da caminhada no sentido Sul, em direção à “Pedra do Moleque” – um dos locais que mais lhe encantou, o trecho da travessia com pedras é bem maior, já o espaço livre desses obstáculos, onde se pode caminhar, é visivelmente menor. Nessa época do ano, o lado Norte tem menos pedras no caminho. Entre a ponta da falésia do Curral do Canto, que se projeta mar adentro, e a Ponta do Madeiro, que tem o mesmo arquétipo, a praia é totalmente livre. Tal situação torna a caminhada segura e prazerosa. Porém, nesse local, o passeio só pode ser realizado com a maré baixa. Para se chegar lá, precisamos atravessar grande quantidade desses “arenitos ferruginosos” que, como já foi dito, estende-se pelas praias do Porto, Porto de Baixo, Baixinha até o início da Praia do Curral do Canto.



Se por acaso o indivíduo, por mera distração ou falta de conhecimento do local e do movimento das marés, demore mais do que é necessário para retornar, certamente, encontrará dificuldades para transpor a faixa de pedras.

As praias situadas no distrito da Pipa têm como principal característica sua proximidade com o mar, por isso, todas as vezes, por ocasião da preamar, as ondas, ao se esparramarem na praia, chegam com facilidade ao sopé das falésias. Ultimamente, com o famigerado aquecimento global, é notório o avanço do oceano em direção ao continente, principalmente na costa nordestina, e isso tem causado muita devastação em diversas praias, inclusive nas praias do distrito da Pipa.

Quem mais sofre com isso são as falésias que, por serem constituídas de material argiloso, não resistem ao impacto das vagas que provocam erosão em suas bases e o seu consequente desmoronamento.

A falésia do Curral do Canto – uma das que mais sofreram com o fenômeno, recebeu, ainda, uma “ajuda extra”: o desmatamento para a construção de um hotel em sua parte superior fez infiltrar as águas de chuva e servidas, o que contribuiu e contribui sobremaneira para o seu constante desmoronamento. Calculo que, nos últimos vinte anos, essa falésia já perdeu mais de 30 metros da parte que se projeta mar adentro.

Em 2009, a força das marés de janeiro provocou na Praia do Madeiro, pelo lado Norte, acentuada devastação. Árvores foram tombadas e algumas construções edificadas indevidamente em seu sopé também foram destruídas.

O mesmo fenômeno ocorre também na Praia do Centro, onde se concentra a maioria das casas de veranistas. Nesse caso, não houve danos, visto que a arrebentação das ondas é contida pelos inúmeros quebra-mares construídos em frente às residências.

A partir do mês de novembro, como é tradição dos antigos veranistas, iniciei uma pequena reforma na nossa velha casa, que ainda guarda alguns traços das antigas construção de taipa. Essa casa é a mesma que você se hospedou quando aqui esteve nos anos 80. Em época remota pertenceu a um pescador nativo da região.



Quebra aqui, conserta acolá, e a pequena reforma logo se tornara grande, com todos os problemas advindos desse tipo de labor.
Como você sabe, parte de minha casa ainda guarda traços da antiga construção, por exemplo: algumas paredes permanecem de taipa e parte da casa ainda era coberta com telhas feitas nas antigas olarias de Aracati. Precisando colocar uma janela numa dessas paredes, ao quebrar parte dela, as madeiras que compunham a estrutura de taipa começaram a aparecer. Os esteios de pau-ferro traçados com varas, amarradas de cipós e cobertas com barro batido, ainda encontravam-se em perfeito estado de conservação. Imaginem que essa construção é de 1920, portanto, com quase 100 anos.

Pude, então, mais uma vez, constatar a segurança e a durabilidade desse tipo de construção, tão comum em toda a zona rural do Nordeste do país.

A reforma me obrigou a ir além do que eu esperava, e as mudanças levaram-me a substituir pelo menos quatro mil dessas telhas. Eram telhas magníficas. Lembro que elas logo chamaram a sua atenção quando aqui esteve. De cor branca, medindo 60cm de comprimento e pesando em média 1,5kg, cada, foram produzidas artesanalmente nas olarias de Aracati – cidade litorânea do vizinho Estado do Ceará. Chegaram aqui no início do século XX, nos porões dos botes dos próprios pescadores que velejavam até o Estado vizinho para adquirir esse material.
Telhas feitas nas olarias de Aracati-CEEmbora na região agreste de nosso Estado já se fabricasse telhas em diversas olarias, o transporte até a Praia da Pipa era muito precário. Como não existia estrada, o único meio de transporte era o lombo de animais de carga, o que, certamente, tornava impraticável o transporte desse material, devido à pequena quantidade de peças que eles eram capazes de transportar por viagem. Restava-lhes, apenas, o transporte pelo mar que, apesar da distância, era economicamente o mais indicado, pois tinham a seu favor o tempo e o vento.



Nos anos 60 e 70, esse tipo de telha cobria a maioria das casas da nossa pequena comunidade. Com a modernidade das construções, aos poucos foram sendo substituídas por telas vermelhas adquiridas nas cerâmicas de Goianinha e adjacências. A nossa casa era uma das últimas a utilizar, em parte de sua cobertura, esse tipo de telha. Obrigado a substituí-las em virtude da reforma, ofereci-as primeiramente à igreja católica, que, em recente reforma, fora coberta com telhas de cimento amianto, as quais, no meu entender, constitui verdadeira agressão à preservação histórica daquele monumento construído na década de 40.

Infelizmente, a doação foi recusada. Sem alternativa, optei por doá-las a um nativo de poucas posses. Para meu regozijo, hoje elas cobrem a choupana onde ele se abriga juntamente com sua família.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

TRIBUTO AO POETA DEÍFILO GURGEL

FALECEU HOJE ÀS 11:00 O POETA E FOLCLORISTA DEÍFILO GURGEL


POETA DEIFILO GURGEL

De todos os e-mail e telefonemas que recebi parabenizando-me pelas matérias publicadas no blog www.ormuzsimonetti.blogspot.com, intitulada VIAGEM INSÓLITA, um deles me deixou particularmente envaidecido. Por ocasião da publicação da segunda crônica - dividida em quatro partes e publicadas todas as sextas-feiras durante o mês de fevereiro - me encontrava na praia da Pipa, quando o telefone tocou: era o meu amigo escritor, poeta e folclorista Deífilo Gurgel. Tivemos uma longa e agradável conversa.

Ele com sua peculiar gentileza elogiou a iniciativa e disse, entre outras coisas, que vinha acompanhando com muito interesse, todas as etapas da viagem, e ansioso perguntou: “Quando você chega à Areia Branca?” Informei que seria na terceira parte da crônica a ser publicada no dia 18. Disse ainda que quando retornasse a Natal iria lhe fazer uma visita em agradecimento ao seu simpático telefonema e aproveitaria o ensejo, para lhe entregar o diploma de sócio fundador do INRG- Instituto Norte-Riograndense de Genealogia.

Na minha modéstia experiência de vida, poucas pessoas conheci tão apaixonado por sua terra e suas tradições, como o poeta Deífilo Gurgel. Sentado em seu terraço, conversamos por mais de duas horas sem sentir o tempo passar. Foi comovente ver aquele homem falar com tanto amor e entusiasmo do seu torrão. As lembranças fluíam naturalmente. Ele às vezes de olhos fechado, lembrava de coisas do seu tempo de menino. Parecia viver aqueles momentos mágicos, de anos que já vão longe. Ali estava um homem-menino sentado em seu terraço, mas os pensamentos repousavam na distante Areia Branca de sua infância.

Entendi que naquele instante era somente a presença física do homem Deífilo, pois seus pensamentos estavam viajando para muitos anos atrás. Era sua infância de menino irrequieto, que andava pelas ruas de areia da velha cidade, que passarinhava nas redondezas e gostava de ver a “revoada dos maçaricos por entre as várzeas de pirrixiu”. Era o menino que corria por entre as matas de matapasto em brincadeira com outras crianças do lugar. Era o observador atento das “moças debruçadas na janela” e do vai e vem dos barcos que atracavam no cais de sua infância, da sua querida Areia Branca. Fiquei em silêncio observando aquele homem em seus devaneios.

Foi emocionante ver que ali estava uma pessoa realizada em todos os sentidos. Bom filho, bom pai, avô extremoso e amigo fraterno, onde do alto dos seus 84 anos de idade, bem vividos, enquanto muitos se sentem incapacitados e se entregam a uma cadeira de balanço na sala de televisão, o poeta-pesquisador está em plena atividade. Continua pesquisando o nosso folclore e escrevendo poemas maravilhosos. Tudo registrado em livros publicados e os ainda a publicar. Gosta de receber em sua morada os amigos para um papo descontraído e ao final da conversa, o interlocutor sabe que sai daquele encontro, muito mais rico de conhecimento.
O seu ritmo de trabalho é invejável. É de sua natureza produzir o máximo que for possível, pois anseia em deixar uma obra literária, que certamente será bem aproveitada e agradecida pelas futuras gerações. São tantas suas atribuições, que o dia se torna insuficiente para dar conta de todos seus compromissos.

Como havia prometido, passei as suas mãos o diploma de Sócio Fundador do INRG- Instituto Norte Rio-Grandense de Genealogia, fato que muito nos honra e engrandece nossa Instituição. Na ocasião fui por ele presenteado com um de seus livros de poemas, OS BENS AVENTURADOS. No tópico “As cidades submersas”, me encantei com uma declaração de amor a sua terra natal no poema “AREIA BRANCA, MEU AMOR”. Tive o prazer e o privilégio de tê-lo escutado, quando dessa visita, recitado pelo próprio autor. Saí daquele encontro muito feliz, assim como todos os que tiveram o prazer de sentar a sombra de sua varanda, para escutar e aprender um pouco, do muito que o poeta tem a ensinar.

Transcrevo na íntegra a poesia Areia Branca, Meu Amor, para o deleite dos leitores.

A cidade adormecida,
no coração do poeta,
entre pregões matinais,
subitamente, desperta.

Para trás da Serra Vermelha,
nasce a manhã, nas levadas,
na solidão das salinas,
nas águas envenenadas.

Maçaricos alçam vôo,
nas várzeas de pirrixiu.
Pescadores solitários,
pescam o silêncio do rio.

Num bosque de matapasto,
atrás de Amaro Besouro,
desabrocha o fumo bom,
em finos cálices de ouro

Calafates calafetam
velhos barcos irreais.
Moinhos movem o vento,
nas tardes do nunca mais.

O sol se pondo na Barra,
entre mangues e canoas,
põe rebrilhos de vitrilhos,
nas marolas das gamboas.

A noite cai. Cães vadios
ladram na rua, à distância.
Deslizam sombras esquivas,
nas esquinas da lembrança.

Todos os que se mudaram
para o outro lado da vida
e dormem, no cemitério
da cidade adormecida.

vêm a mim, me cumprimentam,
me comovo ao recebê-los,
baila uma fina poeira,
em torno dos seus cabelos.

Converso com Pum-na-guerra,
Fumo-bom e Baranhaca.
Abraço Maria Mole,
Ciço Cabelo de Vaca.

Passo no Canal do Mangue,
vou à Fuzaca, à Favela.
Na rua da frente há moças
debruçadas na janela.

D. Adelina me argúi
na taboada e ABC.
Começa tudo de novo,
pela estrada do aprender.

Ouço as valsas da Água Doce,
nas tardes de antigamente.
Entre Bois e Pastoris,
sou menino novamente.


As ruas se embandeiraram,
há lanternas pelas portas.
São João acorda, entre o riso
de pessoas que estão mortas.

Os pés do menino vão
nessas ruas do sem-fim.
O tempo não conta mais,
partiu-se, dentro de mim.

Nesse burgo de embranças,
Guardado pela memória,
Minha vida se inicia,
recomeça minha história.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Do livro “A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS”





OLHANDO ESTRELAS

Duas noites são teus lindos olhos, onde estrelas estão a brilhar, olho a noite só vejo estrelas, em seu olhar. Quero a noite dos teus lindos olhos, onde sempre existe luar, que ternura olhar mil estrelas, em seu olhar... (Roberto Carlos, 1969)







Todos os anos, por ocasião do feriado da Semana Santa, faço um pequeno turismo com minha família. Geralmente viagens curtas principalmente para os vizinhos estados da Paraíba, Pernambuco ou mesmo o Ceará. Em João Pessoa sempre me refugio no Hotel Tambaú. Apesar dos seus 39 anos de inauguração ainda é, em minha avaliação, de longe o mais aconchegante e bem situado hotel de toda a cidade.

Os estados de Pernambuco e Ceará, também fazem parte do meu pequeno roteiro turístico. Nunca me arrisco a ir muito longe, pois significaria a utilização de outro tipo de transporte mais rápido – no caso, o avião – e minha esposa tem um verdadeiro pavor a esse meio de transporte. As poucas vezes que cogitei fazer um percurso mais longo, para os estados de São Paulo ou Rio de Janeiro, onde morei por alguns anos na década de 70, já foi motivo para que ela passasse noites em claro, o que sempre culminou em minha desistência, para aliviar seu sofrimento. Ainda não me senti encorajado a enfrentar essas estradas por tão longo percurso. Quiçá quando a BR 101 estiver totalmente concluída – aumentarão as possibilidades, pois estamos em ano de eleições –, eu resolva me aventurar em uma viagem mais longa.

Na década de 70 costumava a passar esse feriado com a família na Praia da Pipa. De uns tempos para cá, houve um aumento significativo na procura de casas para alugar, nas ditas “casas dos veranistas”. Antigamente essa procura era suprida pelos nativos que moravam na rua de cima. Diante dessa demanda, alguns veranistas, enxergando um bom negócio, começaram a alugar suas casas, nos “feriadões”. O período do reveillon é o mais solicitado, depois vem o Carnaval, Semana Santa, Carnatal, e alguns feriados que propiciam o brasileiríssimo “imprensado”.


No início resisti um pouco a essa prática, pois não me sentia confortável a entregar minha casa a um bando de rapazes e moças que iriam utilizar aquele pedaço de minha intimidade, mesmo por um curto período, e que não havia sido projetado para essa finalidade.

Em dado momento, tive que aderir a tal prática do aluguel, pela total impossibilidade de usufruir a minha própria casa. Os vizinhos, ao alugarem as suas, provocavam involuntariamente essa situação. Os inquilinos temporários, geralmente pessoas de outros estados, estavam ali somente para se divertir, o que significava muita bebida, algazarra e o pior, o som de grande potência ligado dia e noite na maior altura.

Quando aconteciam esses aluguéis, o que primeiro chegava a casa era um caminhão trazendo toda uma parafernália de som dos mais modernos e mais estridentes. Parecia haver entre eles uma verdadeira competição de quem tocaria mais alto. No primeiro dia, todos participavam da farra. Do segundo dia em diante, para desespero da vizinhança, eles democraticamente se dividiam em duas turmas. Enquanto uns dormiam, os outros bebiam e se divertiam sem se esquecerem de manter o som ligado, na altura máxima.

Lá para a meia noite, quando essa turma ia perdendo força e começavam a se espichar em suas redes e colchonetes, era hora dos que dormiam começar a acordar. E assim passavam, para nosso desespero, até o último dia do feriado.
Este ano, eu resolvi inovar. Fui passar o feriado em minha chácara. Juntei todos os meus filhos, os genros, o neto, os cunhados e sobrinhos e fomos para o campo. Foram dias maravilhosos. Longe do agito e das aglomerações. Foi o local perfeito para curtir a família e reciclar um pouco nossas vidas como pessoas e como cristãos.
Fizemos de tudo um pouco, principalmente conversamos sobre nós e nossa família. Bons momentos para reflexão, pois evitamos ao máximo a famigerada presença da televisão, principalmente dos jornais televisivos, com suas costumeiras notícias de tragédias humanas, corrupção dos políticos, crimes de toda espécie, o constante avanço das drogas, a incapacidade do Estado de enfrentar os problemas etc. Vocês já observaram que esse tipo de noticiário ocupa 95% de todos os jornais televisivos?

A “contribuição desses jornais” é tanta, que a cada modalidade de crime que se pratica no Sul do país, ou fora dele, no mesmo dia e hora chegam aos lares de todos os brasileiros, em detalhes e com manual de instrução, para facilitar o aprendizado. A bandidagem interiorana acostumada a pequenos delitos, logo se aproveitam desses verdadeiros cursos à distância. Sem pedir licença, essas “prestações de serviços” entram em nossas casas, desde as maiores metrópoles até os mais longínquos rincões, instruindo e aperfeiçoando as técnicas de nossos bandidos tupiniquins.



Fugindo desse tipo de notícia, na sexta-feira à noite, resolvi ir até a beira da lagoa, completamente ausente de qualquer iluminação, um pouco distante da casa. Cheguei andando devagar para que a vista se acostumasse à ausência de luz. Deitei-me no píer e fiquei olhando para a imensidão do firmamento. Comecei a observar as estrelas. De repente, lá estavam o Cruzeiro do Sul, as Três Marias, a estrela Dalva –Vênus – a Via Láctea... Aquela visão me deixou em êxtase. Há quanto tempo não tinha aquele privilégio de olhar o céu apinhado de estrelas. Somente a escuridão da noite no campo nos propicia essa visão maravilhosa. Nesse ambiente, o céu não está ofuscado pelo lume das cidades, o que torna impossível a observação em toda sua plenitude.

Não pude evitar que me fossem chegando, devagar, as lembranças de minha infância. Divaguei por alguns instantes e as lembranças me remeteram a um tempo que já vai longe.

Na minha infância e adolescência, costumava passar as férias escolares do mês de julho na fazenda de meu pai, que ficava no município de Serrinha-RN.
Naquela época a fazenda ainda não tinha energia elétrica. A iluminação era à base de lamparinas, candeeiros e lampiões. Após o jantar, costumava ficar no alpendre ou mesmo no pátio em frente à casa grande, conversando com os primos que comigo partilhavam daquelas férias. As estrelas faziam parte das nossas observações noturnas. Gostávamos de observá-las, principalmente as cadentes, e até contá-las, disputando quem as via primeiro e em maior quantidade. Inocentes brincadeiras de criança.



Pois bem, nessa bendita noite de sexta-feira santa, à beira da lagoa, redescobri, maravilhado, que muitos prazeres da nossa vida podem estar escondidos no simples ato de, por exemplo, olhar estrelas no campo em meio a uma noite escura de verão.

Natal, de abril de 2010.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ACTAS DIURNAS

DENDÊ ARCOVERDE – PARTE III

Casara com sua prima d. Antônia Josefa do Espírito Santo Ribeiro d' Albuquerque Maranhão, filha de João d' AI­buquerque Maranhão e de d. Antônia Josefa, irmã de sua mãe. Seu sôgro, quase centenário, veio a falecer, na Província da Paraíba, a 20 de agosto de 1859. Dendé perdeu a mulher no dia 7 de outubro de 1835.

Dizem que a envenenou, passando, á pretexto de fazê-la perfumada, unguento misterioso pela linda cabeleira da esposa. A senhora morreu, dias depois do agrado, com furiosas dôres de cabeça. A tradição oral registra que o único filho- legítimo do Brigadeiro Arcoverde, o pequenino André, fôra igualmente assassinado pelo Pai, com processo idêntico ao que sofrera sua Mãe. O menino sucumbiu a 25 de novembro de 1836. Uma versão, mais humana e lógica, informa que d. Antônia Josefa falecera de febre puerperal e o filhinho, de meningite. .

Dendé ficou com as duas heranças ... Seu irmão mais velho, José Inácio durante as parti­lhas, quando do inventário de sua Mãe, em 1846, teve de­savenças com o Brigadeiro. José Inácio era influente, sol­teiro, rico, várias vezes presidindo a Câmara de Vila Flor. Residiu em "Belém" e "Estivas". Dendé mandou-o matar, com a naturalidade de quem encomenda a um caçador uma peça de caça. Escapando várias veres às emboscadas, José Inácio deliberou fugir para Europa.

Vendeu parte dos bens e, com Joaquim Cardoso, seu capataz de confiança, veio ao engenho "Bosque", em Goianinha, e enterrou uma mala cheia de moedas de ouro. Passou procurações para uns parentes seus administrarem as propriedades. Numa dessas jornadas uma descarga apanhou-o num braço, ferindo-o levemente. José Inácio, esperando a época da viagem, veio refugiar-se em "Estivas", em casa do Capitão-Mór André d'Albuquerque Maranhão, coronel das Ordenanças de Vila Flor e Arês. Este mandou vigiar os arredores. Os días passaram, calmos.

Uma manhã, conversavam, André de "Estivas" e José Iná­cio, no alpendre da casa-grande. José Inácío, deitado numa. espreguiçadeira, segurava um lenço de cambraía de encontro ao ouvido. Ao lado ficava uma olaria onde alguns homens do Capitão-Mór trabalhavam. Bruscamente, um trabalhador gri­tou: - guarda a tiro! Da olaria dispararam dois bacamar­tes, de pontaria dormida. Uma bala atravessou a mão, o lenço e a cabeça de José Inácío . O fidalgo caiu de bruços fulmina­do. O Capítão-Mór correu em cima dos emboscados que deapareceram.
Horas depois, chegava à "Estivas", o Brigadeiro Dendé Arcoverde, todo de preto, grave, compungido, com um sequito de guardas, armados e montados. Esteve muito tempo olhan­do o cadáver do irmão. Ajoelhou-se perto, persignou-se, e declarou que viera buscar o corpo para ser sepultado, com hon­ras, na capela de Cunhaú. Organizou o prestito e carregou o defunto numa liteira.

Enterrou-o com pompa. No sétimo ­dia veio a orquestra de São José de Mipibu, dirigida por Joa­quim Barbosa Monteiro, para tocar durante a missa fúnebre. José Inácio ficou na capelinha de Cunhaú. Dendé herdou tudo ...
Joaquim Barbosa Monteiro, que faleceu aos 85 anos em S. José de Mípíbu a 7 de outubro de 1907, contara ao cel. Felipa Ferreira da Silva de "Mangabeira", que, terminada a cerimônia, apresentara as despedidas ao Brigadeiro que pas­seava, todo de branco, na calçada. Dendé Arcoverde falou, com a voz grossa e alta que assombrava até aos Anjos do Céu ...

- Não lhe pago agora porque não tenho dinheiro que chegue. Vá para casa que receberá logo que me venha o que estou esperando ...
Julgando agradar, Monteiro explicou que o toque era gratuito. O Brigadeiro franziu o couro da testa como um tigre: - Atrevido! Querer fazer um favor ao Brigadeiro Arcoverde para sair dizendo que ele não tinha que pagar! .
Ousadia desse diabo! Suma-se de minha presença, depressa!
Joaquim Monteiro saltou num cavalo e galopou até São José de Mipibu, resando a "Salve-Rainha" quando se encon­trou fora dos caminhos de Cunhaú.
Mas, dias depois, Simplício Cobra Verde foi a S. José entregar a Joaquim Monteiro o pagamento, verdadeiramente fidalgo, da tocata e do susto.

Para o seu tempo, o fausto do Brigadeiro teve as honras da lenda. O Sr. dr. Eloy de Souza relembrou a fama em sua conferência "Costumes Locais" (Natal. .. 1909 p . 7); - "A tra­dição ainda recorda as riquezas dos Arcoverdes, em proprie­dades que mediam léguas, em escravos tão numerosos que a muitos ignoravam os nomes e extranhavam a própria fisio­nomia e em moedas de prata e ouro, semestralmente postas a arejar largos couros extendidos no terreiro da casa grande. Célebres foram as suas baixelas de prata e ouro; e célebres as viagens que faziam ao Recife, em liteiras puxadas por ca­valos cobertos com pesados mantos de tafetá recamados d'ou­ro; o enorme sequito de agregados de todos os matizes; a cha­ranga, as barracas. de seda e toda a régia munificência com que iam afrontando o humilde sossêgo das praias por onde passava tão fidalgo e ruidoso cortejo".

Natal – RN, 10.05.1941

(Transcrição Ipsis litteris do “Livro das Velhas Figuras”)

domingo, 1 de janeiro de 2012

DO LIVRO "A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS -

Beleza de publicação. Realmente você escreve de forma que a caneta desliza com facilidade no papel e consegue transmitir aos seus leitores um clima de praia que dá até para sentir o frescor da brisa e o cheiro característico do mar. Ter estórias como essas gravadas na mente nos enriquece e nos torna mais leves, pois temos a certeza de uma infância feliz e muita coisa prá contar, principalmente aos netos. Parabéns e sucesso.

Carlos Cabral de Freitas

DO LIVRO "A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS -

MEU CARO ORMUZ SIMONETI.EM PRIMEIRO LUGAR QUERO PARABENIZA-LO PELO EXCELENTE BLOG "GENEOLOGIA E HISÓRIA", PELA APRSENTAÇÃO GRÁFICA E, SOBRETUDO, PELA QUALIDADE DOS CONTEÚDOS HISTÓRICO-GENEALÓGICOS-LITERÁRIOS. FELICITAÇÕES PELO SEU MÉRITO. ALIÁS, SEU BLOG JÁ CONSTA NA LISTA DOS BLOGUES RECOMENDADOS PELO MEU PRINCIPAL BLOG, ABAIXO MENCIONADO.EM SEGUNDO LUGAR, QUERO DIZER-LHE QUE FOI UM PRIVILÉGIO CONHECE-LO E UMA HONRA RECEBER O SEU CONVITE PARA ME CANDIDATAR A MEMBRO DO INRG, QUE EM BOA HORA FUNDOU E A QUE PRESIDE COM JUSTO MERECIMENTO E COMPETENCIA. ESPERO PODER MERECER A VOTAÇÃO QUE APROVE A MINHA CONSAGRAÇÃO COMO MEMBRO DO INRG E, SE TAL SE CONFIRMAR, REPRESENTAREI O INRG COM TODA A DIGNIDADE, COMO FAÇO EM RELAÇÃO A TANTAS OUTRAS PRESTIGIADAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS DE QUE SOU MEMBRO, EM VÁRIOS PAÍSES, COM DESTAQUE EM PORTUGAL E BRASIL-RN.EM TERCEIRO LUGAR, APROVEITO PARA LHE LEMBRAR QUE, AO NOS TER DADO A HONRA DE ACEITAR SER MEMBRO DO “CONSELHO EDITORIAL” DO NOSSO PRINCIPAL BLOG-REVISTA “CULTURAS E AFETOS LUSÓFONOS”, FICAMOS NA EXPECTATIVA DE – QUANDO FOR DE SUA VONTADE E DISPONIBILIDADE – NOS ENVIAR PARA PUBLICARMOS SEUS PREZADOS ESCRITOS.
www.culturaseafectoslusofonos.blogspot.com.br
www.lusotur.blogspot.com
www.pro-civitas.blogspot.com

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

DO LIVRO "A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS -

Saudosas lembranças II

Comecei a veranear na Pipa ainda na barriga da minha mãe, assim como todos os meus irmãos. Meus filhos trilharam o mesmo caminho, e também meu neto. É uma relação muito íntima que temos com aquele pedaço de chão. A família Barbalho/Simonetti iniciou os veraneios na Pipa no ano de 1926, três anos depois do nascimento da minha mãe, hoje com 86 anos de idade.
Como o veraneio acontecia somente no mês de janeiro, passávamos o ano inteiro esperando este acontecimento. Contávamos os dias, as semanas, os meses... E quando chegavam as férias do final do ano, a ansiedade era tanta que, por muitas vezes, perdia o sono e só adormecia quando era vencido pelo cansaço. Eu não via a hora de subir no caminhão para fazer aquela tão desejada viagem.

Na década de 60, já era possível contar com a modernidade e o conforto dos caminhões. Nossos pais viajavam na boleia enquanto os filhos e empregados acomodavam-se em cima da bagagem. Dentre toda a tralha que era levada, não faltavam cadeiras e colchões feitos com palha ou junco, para acomodar a todos.
As famílias que moravam em Natal saíam muito cedo e enfrentavam pelo menos 60 quilômetros de estrada de chão, pouco conservada, até a cidade de Goianinha. Eram horas sacudindo na carroceria do velho Dodge até avistar a Usina Estivas. De cima da ladeira, podia-se ver ao longe a bela cidade e compreender a exclamação encantada e justa do Dr. Alfredo de Araújo Cunha (1861-1929), que olhando o casario branco da cidadezinha clara disse: “Goianinha, Pátria de Anjos!”.

Depois de descer a ladeira com dificuldade, alcançávamos o vale e, a partir dali mais três quilômetros depois, entrávamos triunfantes na cidade. Estava vencida a primeira etapa da estafante viagem.Uma parada “estratégica” na casa de meu avô Odilon Barbalho, e o almoço estava garantido. Daí por diante começava o trecho mais complicado e sofrido da viagem. Era comum os velhos caminhões, após certa jornada, pararem por aquecimento no motor, mas nada que não fosse resolvido com uma boa lata d’água no radiador e logo já estavam de volta à estrada. Continuava a viagem como se nada tivesse acontecido. Não havia possibilidade de fazer toda aquela viagem sem dar um “prego”. Se não acontecia no trecho vencido entre Natal e Goianinha, podia contar que, até a
Pipa, não havia reza forte que fizesse chegar ao destino sem o famoso “prego”.

Não se esperava nem o sol esfriar, pois esse trecho era mais deserto e, se por acaso houvesse algum imprevisto no caminho, tinha-se tempo para realizar o conserto e chegar ao destino antes do anoitecer. Até o distrito de Piau, a viagem seguia sem maiores problemas. Depois que entrávamos nos “tabuleiros”, a estrada se tornava ainda mais precária. Geralmente essa estrada era utilizada somente por animais de carga e pessoas que faziam a pé o caminho entre Piau e Pipa. Por ser rara a passagem de carros, não havia nenhuma manutenção. Em determinados trechos a vegetação lateral era praticamente aberta pelo para-choque do caminhão, e acima de nossas cabeças as árvores se fechavam totalmente, formando um túnel de galhos e folhas. De tão próximos, era possível apanhar de cima da carroceria do caminhão, cajus, mangabas e outras frutinhas muçambê.

Havia dois pontos que eram temidos pelos motoristas, por causa de sua difícil transposição: a ladeira do Rio Galhardo e a ladeira do Sanharão. Na primeira, além da dificuldade de vencer a subida de areias frouxas, ainda tinha o problema do rio que, embora raso, impedia que o caminhão tomasse alguma velocidade. Nesses dois pontos descíamos todos, e a ladeira era vencida a pé. Ficavam somente o motorista e o “calunga” – alcunha do ajudante, que, de cepo na mão e em constante sintonia com o motorista, fazia, metro a metro, o veículo vencer, ladeira acima, as terríveis areias daquele trecho. O cepo era uma peça de madeira com uns 50cm de comprimento por uns 20cm de altura, que se colocava atrás das rodas traseiras do caminhão, impedindo que ele descesse após alguns metros de subida. Nunca esqueci os gritos ofegantes do motorista: “Bota o cepo”, e, pouco depois... “Tira o cepo”.

Sempre que o caminhão vencia um pouco a areia, era colocado o tal cepo para que ele não retornasse. Depois de algum descanso, lá se ia mais uma tentativa. Vencidos alguns metros de areia, novamente o cepo era colocado, era assim até que se chegássemos ao topo.

Na ladeira do Sanharão, acontecia a mesma coisa, porém com mais dificuldade, pois além do percurso ser maior, havia uma curva na metade da ladeira, que dificultava a subida. E, depois de praticamente um dia inteiro de viagem, chegávamos ao nosso destino.

Até o final da década de 70 não existia energia elétrica na Pipa. A iluminação das casas era feita com as lâmpadas a querosene. As marcas Coleman e Aladim eram as mais conhecidas. O querosene utilizado era o nosso velho Esso Jacaré. Essas lâmpadas eram o que havia de mais moderno. Durante as refeições noturnas ficavam nas salas de jantar e posteriormente eram transferidas para os alpendres, onde as famílias se reuniam para conversar amenidades ou mesmo jogar um carteado à base de sete e meio, buraco, pif-paf ou relancim.

Os candeeiros, lamparinas e lampiões eram usados na iluminação dos quartos, cozinhas e banheiros. Os mais afortunados possuíam geladeira também a querosene e tempos depois apareceram as mais modernas que funcionavam com botijão de gás.

Depois de um ano inteiro sem uso, as lâmpadas geralmente apresentavam algum problema de funcionamento e, nessa ocasião, entrava em cena tio Venício, irmão da minha mãe, especialista no conserto dessas lâmpadas. De óculos na ponta do nariz e sempre mastigando a língua no lado da boca – não havia defeito que ele não arrumasse. Depois de alguns minutos de trabalho e da colocação de uma camisa nova, era só dar algumas bombadas de ar e lá estavam à disposição 500 velas de boa iluminação.

Essas lâmpadas também eram utilizadas para iluminar os banhos noturnos. Quando isso acontecia, era preparada uma quantidade de “caipirinha” feita com a boa cachaça trazida dos engenhos de Goianinha, limão, açúcar e gelo. Este último era conseguido a duras penas nas velhas geladeiras; sempre ficava a desejar. Era tudo levado para a beira da praia, juntamente com os tira-gostos – “paredes”, previamente preparados pelas mulheres.

As lâmpadas eram colocadas suspensas em um “garajal” – tripé feito de madeira, que os nativos subiam para martelar as estacas dos currais de peixe – e a diante, quando a “marvada” começava a fazer efeito, os adultos ficavam mais relaxados. Era a ocasião pela qual nós adolescentes esperávamos. Aproveitando algum descuido dos nossos pais, também tomávamos um pouco daquela bebida maravilhosa que nos deixava alegres e risonhos.
Pela manhã, nós jovens nos reuníamos em algum daqueles alpendres para jogar conversa fora. Nós todos éramos parentes, e alguns, por morar em outros estados, só se encontravam durante o mês de janeiro, no veraneio da Pipa. Essa ocasião era esperada por todos com muita ansiedade. Como não ter saudade dessas coisas simples? De um tempo feliz de nossas vidas, que sabemos, nunca mais voltará.

Natal, outubro de 2009.

ACTA DIURNA - DENDÉ ARCOVERDE - PARTE II

De estatura acima da mediana, robusto e bem conformado, Dendé Arcoverde tinha os ombros amplos e o torax saliente. Dispunha de fôrça incrível, cavaleiro emérito e ati­rador maravilhoso. Pulava agilmente uma janela, de costas. A barba negra curta, rente a face vermelho-clara, fazia res­saltar a dentadura perfeita, branca como côco ralado. A voz é alta, estertórica, audível a distâncias que as lendas multi­plicam. Os olhos rasgados, enormes, negros e luminosos, faiscavam de irritação contínua. A esclerótíca, raiada de san­gue, é um distintivo que transmitiu aos seus bastardos.

Morou sempre em Cunhaú onde tinha uma "parte" .herdada de sua Mãe, cujo inventário é de 1846. Só arrendou as "partes" de seu tio, o Capitão-Mór André "de Estivas" e de seu primo, o Comendador André d'Albuquerque Maranhão, ·"de Itapecerica", em 1851. Cunhaú estava no centro das suas terras. Englobavam-se nelas a "usina Maranhão", "Bom Pas­sar", "Torre", "Antônio Freire", "Areré", "Mangueira", "Cruzeiro", "Estrela". Tudo era Cunhaú, até a extensão verdejante do "sítio Estrela" se incluía na denominação do engenho tra­dicional. Derredor dessa região rodava o Mêdo ...

Criminoso que tocasse, ao menos tocasse, uma estaca de Cunhaú, estava valido. Não havia "força do Governo" que se atrevesse a perseguí-lo. A casa-grande ficava circundada de choupanas onde se acoitavam os "fora da lei", fanáticos pelo brigadeiro, sombras do seu braço.

Depois do jantar, até ás trindades, o Brigadeiro, todo ­vestido de branco, passeava ao escurecer na calçada imensa da residência. Quem tinha negócio e não era pessôa de merecimento, alinhava-se, junto aos outros pretendentes, espe­rando que um olhar casual do Brigadeiro pousasse nele. Nin­guém ousava dirigir-lhe a palavra e sim responder. Mas, fosse como fosse, não deixavam de ter negócio e "trato" com ele. Não perdoava dívidas nem ficava devendo.
Foi o vingador de André d'Albuquerque, seu tio, assassinado em abril de 1817. Voltando d'Europa e sabendo mínuciosamente a morte do parente, inqueriu da vida do matador. Disseram que uma tentativa a tiro havia falhado. Dendé reprovou a técnica.

- Qual tiro! Tiro faz barulho e assombra a caca. Vamos á faca. É silencioso e seguro.
Procurou informar-se. Apontararm vários nomes como responsáveis João Álvares do Quental esporeára o cadáver. Francisco Felipe da Fonseca Pinto, o alfaiate Costa Bandeira. Falaram no tenente-coronel Antônio José Leite do Pinho.

- Eu não quero saber dos outros acusados. Ferissem ou não, certamente ficaram com medo da vingança. O que eu desejo saber é quem pregou uma medalha no peito e cercou as ,mangas de galões por ter assassinado um Cunhauzeiro. Quem aproveitou do crime é que é o principal criminoso.
Mandou um negro e um caboclo matarem á faca o coronel Leite do Pinho. Entregou-lhes facas de prata, dizem que envenenadas. Prometeu que nunca mais teriam necessidade de cousa alguma se trouxessem as orêlhas do coronel.

Os dois mandatários espreitaram Leite do Pinho durante horas.
Numa tarde de procissão terminada a cerimônia, o coronel deitou-se num tapete diante da casa, na atual Praça 7 de Setembro, em Natal, tomando fresco, e brincando com um neto. Os dois enviados de Cunhaú caíram sobre ele numa luta feroz e rápida. Não lhe poderam cortar a orêlha mas deixaram as facas enterradas no ferido, e fugiram. Leite do Pinho faleceu na madrugada de 15 de março de 1834.

Dendé recompensou seriamente aos dois asseclas Mandou sepultar o negro, vivo, perto da Casa-Grande de Cunhaú, e plantou um coqueiro em cima do túmulo. O caboclo foi em­palado na Mata das Varas e o corpo mumificado, até poucos anos espavoria os lenhadores. Cumprira a promessa. Caboclo e negro nunca mais tiveram necessidade de cousa alguma . . .
É façanha mais antiga de Dendé, sua "entrada" solene no memorial truculento em que é recordado ...

Ignoro a origem do seu tratamento de "Brigadeiro" De­balde, a meu pedido, o saudoso general Luíz Sombra rebuscou arquivos militares no Rio de Janeiro. Não há o menor vestí­gio de razão nesse título altissonante correspondente ao nos­so "General de Brigada". Mas "Brigadeiro" é como Dendé Ar­coverde é citado em toda região de seu prestigioso renome. Substitui quase o nome. Dizem, comumente "o Brigadeiro", e já se sabe que a evocação se refere ao impetuoso senhor de Cunhaú. De onde, e porque lhe veio o tratamento militar, quaís os serviços para merecê-la, em que época recebeu a mercê honorária, não sei. Não foi possível, apesar das pesquisas, saber.



Arma encontra-se no Instituto Hostórico e Geogrpafico do RN.


(Esta arma pretenceu ao negro Simplício, apelidado de "Cobra Verde", homem de confiança do "Brigadeiro"Dendé Arcoverde, impetuoso senhor de Cunhaú(1830). Era um atirador perfeito. Não errando um tiro. Sua espingarda foi batizada por "meio berro" porque matara uma novilha antes do animal acabar o berro iniciado)


O homem de confiança do Brigadeiro Dendé Arcoverde era o negro Simplício, conhecido por "Cobra Verde", alto, magro, sério como um ídolo, e agil como o vento. Era o melhor atirador dos arredores e nunca errou um tiro. Sua ar­ma especial era uma carabina Minié batizada por "Meio berro", porque matara uma novilha antes do. animal acabar o berro iniciado. Um bastardo de Dendé, Afonso Arcoverde, presenteou a arma ao Cel. Felipe Ferreíra, de "Mangabeira" e este ofereceu-m'a. Dei-a ao Instituto Histórico do Rio Gran­de do Norte, onde se encontra.


(Ormuz Simonetti segura a carabina "meio berro" no IHGRN)


O negro Simplício depois da morte do Brigadeiro, dei­xou a Província e se instalou numa casa que erguera no meio do mato, como um bicho saudoso da solidão e do mistério. Não admitia visitas e andava sempre armado. Jamais falava no nome do amo, a quem adorava. Morreu no dia do Natal de 1896, quando completava cem anos, data predita por ele como sendo de sua morte. Está sepultado em Mataraca, na Paraíba.


(Capela onde foi enterrado André de Albuquerque Maranhão Arcoverde)


(08.05.1941)

-Continua . . .