PUBLICANA EM “O JORNALDEHOJE” EDIÇÃO DE 26 DE FEVEREIRO DE 2010.
Pipa, saudosos veranista – Minha homenagem
Dona Cirene Barbalho Simonetti era a mais antiga e assídua veranistas da Praia da Pipa. Contava apenas três anos de idade quando chegou nesta praia pela primeira vez, em companhia de seus pais no distante ano 1926. Não podendo continuar com os veraneios na praia de Tibau do Sul, em virtude da cheia de 1924, meus avós escolheram a praia da Pipa, poucos quilômetros ao Sul, como substituta. Desde então, retornou religiosamente, todo meses de janeiro, pelos últimos 83 anos.
Tinha por essa praia um amor incondicional. Seu último veraneio foi em janeiro de 2009, quando sofreu uma isquemia e precisei socorrê-la às pressas pra Natal. Foi a mais longa viagem da minha vida, dado as dificuldades que enfrentei durante todo o percurso. Depois desse incidente, nunca mais retornou à praia que tanto amava.
Nasceu no dia 19 de abril de 1923 na cidade de Goianinha-RN. Passou sua infância entre o verdor dos canaviais que ondeavam o vale do engenho “Bem Fica” e a cidade onde nascera. Como toda criança nascida nos antigos engenhos de cana-de-açúcar, passava boa parte do dia brincando com os irmãos entre a bagaceira, a casa das moendas, e as formas de açúcar dispostas na “casa de purgar”.
Quando criança, por várias vezes viajou dentro de caçuá em lombo de animal, do engenho “Bem Fica” até a praia da Pipa, onde passava com a família, os meses de janeiro. Fazia dupla com seu irmão Antônio (Tio Tonho) que adorava dizer que era como irmãos gêmeos. Sendo praticamente da mesma idade, com apenas um ano de diferença, partilhavam alguns pertences. Um par de alpargatas servia para os dois. Quando um ia à cidade, o outro, resignado, ficava em casa.
Na adolescência, já demonstrava uma grande habilidade quando cavalgava do engenho à Goianinha, distante poucos quilômetros. Nos períodos de férias da Escola Doméstica, onde estudou por vários anos, retornava ao engenho e livre da rigidez disciplinar, entregava-se de corpo e alma as mesmas brincadeiras de menina de engenho. Gostava de “pegar parelha” com os irmãos em desabaladas corridas no pátio, em frente à casa-grande, onde se lia no alto em letras graúdas “Vila Elvira”, em homenagem à minha avó, Elvira Macionila Barbalho. Nesta brincadeira, ela quase sempre saia vencedora o que era motivo de zombaria aos que perdiam.
Na época, em que as viagens para a Pipa eram feitas a cavalo, mamãe ganhara de meu avô Odilon Barbalho, um cavalo e lhe deu o nome de “trinta e um”. Montada em cilhão desafiava os irmãos ou primos para disputar corridas ao longo de toda a viagem.
Nas longas conversas que tivemos sempre recordava saudosa, momentos felizes de sua infância. Contava que gostava de procurar ninhos de pássaros nos arvoredos próximos a casa grande, tomar banho nas tapagens – barragens feitas nas levadas para aguar os partidos de canas-de-açucar -, ou simplesmente de contemplar o céu em dias ensolarados, tentando adivinhar figuras que se formavam nas nuvens de algodão. À noite, procurava no céu escuro, estrelas cadentes para a elas fazer pedidos ou lhe contar seus segredos de criança.
Falava do quintal da casa grande cheio de mangueiras, goiabeiras, araçazeiros, laranjeiras e uma jabuticabeiras que freqüentemente subia para se esconder dos irmãos, ou quando queria simplesmente ficar sozinha. Lá mais pro fim do quintal, perto do rio, torceiras de cana Caiana e Flor de Cuba, onde gostava de chupar seus roletes molinhos e doces. Ao lado da casa, um grande pé de cajá-manga onde todas as manhãs, reuniam-se sanhaços, xexéus, galos de campinas, canários da terra e tantos outros pássaros que gorjeavam, saudando o milagre do amanhecer de mais um dia.
Dizia que ainda podia sentir o cheiro doce do caldo da cana, cozinhando nos grandes tachos de bronze para fazer o açúcar mascavo. Logo as lembranças lhe chegavam com tamanha intensidade que, por diversas vezes, pude observar em seu semblante, que em devaneios, revivia aqueles momentos, ao tempo em que os pensamentos voavam para o velho engenho.
Falava do rangido das moendas amassando a cana, o caldo escuro escorrendo para os tanques de armazenamento, o bagaço sendo transportado pelos animais que arrastando um couro de boi, levavam para o pátio o que sobrava das moendas. Quantas vezes, em brincadeiras com outras crianças, subia naquele couro junto com o monte de bagaço para ser levada também até o pátio. Recordava o feitor que aos berros, dirigia homens e animais, naquele frenético vai e vem de burros, cambiteiros e puxadores de bagaço. Lembrava do mestre de açúcar e descrevia seus movimentos precisos, transportando de um tacho pra outro, o caldo quente que cada vez mais apurado, ia se transformando em açúcar. O cheiro doce do “mel de furo”, escorrendo das formas de açúcar, que descansavam na “casa de purgar”.
Quando criança chegou a morar um tempo na casa do meu pai, e seu cunhado, Arnaldo Barbalho Simonetti, na cidade de Macaíba, recém casado com sua irmã mais velha, Inaldy Barbalho. Com apenas 11 anos de idade, foi ajudar a irmã que descansara de seu primeiro e único filho Dante Simonetti. Quis o destino que tempos depois, com a morte prematura da irmã, viesse a se casar com ele, que também era seu primo legítimo.
No início de seu casamento, morou em São José de Mipibu, onde nasceram três de seus filhos, inclusive eu. Os outros dois nasceram em Natal. Gostava de recordar o tempo das campanhas políticas, quando em 1947 meu pai elegeu-se deputado à Assembléia Constituinte.
Teve cinco filhos e foi muito feliz durante cinqüenta anos que permaneceu ao lado daquele homem, treze anos mais velho, que a amou e respeitou até o último dia de sua existência aqui na terra.
Não gostava de seu nome. Dizia ter sido um viajante, que em passagem pelo engenho, vendo minha avó grávida, sugeriu o nome. Ela ainda completava: “Que falta de sorte!” Ultimamente, por brincadeira, eu só a chamava de CIRLENE e ela dizia: ”Esse sim é mais bonito!”
A alegria era sua principal característica que, embora contrapondo com a sisudez de papai, nunca foi por ele reprimida. Nos veraneios da Pipa, sempre promovia brincadeiras para distrair a família. Incentivava o roubo de galinhas nas casas dos parentes que virada em tira-gosto de uma boa cachaça, animava os banhos de mar à luz de lampiões ou em noites de lua clara. Todos os veraneios, volta e meia, gostava de reunir no alpendre de sua casa amigos e parentes para degustar seu maravilhoso “arroz doce”, feito com açúcar mascavo.
Como todo ser humano, também teve suas dores e decepções. A perda do meu pai foi um grande golpe em sua vida. Tempos depois perdia dois dos seus amados filhos. Ninguém deveria sepultar os filhos. A recíproca é verdadeira. O caminho natural é que os filhos sepultem seus pais. Quando a mão de Deus interfere nessa trajetória, a dor é incomensurável. Só alguém que a sentiu, pode avaliá-la. Rogo a Deus, para que nunca me aconteça tal infortúnio.
Nos últimos 10 anos estive muito presente na vida de minha mãe. Durante esse tempo, pelo menos cinco dias da semana, almoçávamos junto. Após as refeições, ficávamos a conversar. Ela gostava de lembrar a infância na casa-grande do engenho Bem Fica, dos meses de julho que, passava na fazenda Lagoa Nova, propriedade que meu avô possuía no município de Santo Antônio.
Adorava cantar e ouvir músicas. Tinha uma grande coleção de CDs e gostava de dormir ouvindo seus cantores preferidos, entre eles Roberto Carlos e o Trio Iraquitã. Declamava poesias aprendidas quando criança nos bancos do Grupo Escolar Moreira Brandão. Lembro que nos emocionava quando recitava, sem tropeços, a poesia que mais gostava: “Pássaro Cativo”.
“Arma-se em um galho de árvore um alçapão e em breve uma avezinha descuidada, batendo as azas cai na escravidão”. . .
Depois da isquemia ela foi ficando mais calada. Já não tinha a vivacidade de outrora. Sempre que terminávamos o almoço, pedia pra se deitar. Às vezes ficava calada durante toda a refeição. Eu sempre procurei entende-la e respeitar aquele momento, muito embora me doesse profundamente vê-la com o olhar perdido, mergulhada em seus pensamentos. Entretanto eu sabia que a minha simples presença ao seu lado, lhe trazia conforto e segurança. Ficávamos ali, sentados, em silêncio, até que ela pedisse pra se deitar.
Ultimamente, vez por outra, dizia que estava com muita saudade de papai e que tinha sido muito feliz no casamento. Lembrava dos parentes já falecidos e coisas dessa natureza. Outras vezes apenas dizia: “Meu filho, estou muito velha e cansada”! Parece que Deus, na sua divina sapiência, dota as pessoas, em momentos de suas vidas, de conformação. A idéia da morte já não as assusta. Inconscientemente ela sabia que já tinha cumprido aqui na terra, sua missão.
No último dia 8 de fevereiro ela partiu. Seu semblante era tranqüilo e refletia a paz dos justos. Não se observava em seu rosto nenhum traço de sofrimento. Dormia como tantas vezes a vi dormir em seu quarto, que há algum tempo tinha se transformado em seu refugio preferido. A exemplo de meu pai e meus dois irmão, foi contemplada com a partida sem sofrimento e hoje, está reunida em comunhão com todos os parentes e amigos, ao lado do Criador.
Obrigado mãe, pelo amor que nos dedicou, pela alegria que nos contagiou, pelo exemplo que nos deixou e por todos esses anos felizes que vivemos ao seu lado.
Pipa, fevereiro de 2010.
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