domingo, 7 de junho de 2009
A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS - MATÉRIA PUBLICADA NA TRIBUNA DO NORTE EM 07.06.2009
TRIBUNA DO NORTE
QUADRANTES
07/06/2009
ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Genealogista e historiador)
Pipa – morre o mestre Francisquinho
Em 1939 chega à praia da Pipa, vindo do norte, mais precisamente da praia de Galinhos (RN), Francisco Caetano do Nascimento, mais conhecido por Francisquinho. Aos 16 anos de idade, o jovem pescador veio acompanhando seu tio, mestre de um barco, para uma temporada de pesca da albacora.
A Pipa vinha se tornando famosa pela grande quantidade de peixes que se capturavam em suas águas, atraindo pescadores de várias praias do nosso estado e até mesmo de outros vizinhos, como a Paraíba e Ceará. Ao retornar para Galinhos, após o final da safra de albacora, Francisquinho informou a sua mãe que tinha gostado muito do lugar e que voltaria pra morar. Então, no mesmo ano, o adolescente chega à Pipa, e dessa vez, para ficar.
No início, começou a pescar em barcos de outras pessoas e como já entendia um pouco da carpintaria naval, aventurou-se no conserto de botes. Em Galinhos, onde morava, costumava realizar pequenos consertos em embarcações que chegavam avariadas. Posteriormente, veio a se tornar o maior carpinteiro naval das praias do litoral sul, como são conhecidas as praias que se situam a direita da cidade de Natal. Anos depois, Francisquinho conheceu a viúva Maria da Conceição Borges, e com ela se casou. Dessa união tiveram cinco filhos, sendo dois homens, três mulheres e um sexto filho que foi adotado.
Os dois primeiros botes que construiu foram: Taubaté e Baluarte. A partir daí, até o último bote construído, Malembá II, foram mais de quinhentas embarcações entre botes a pano, a motor e jangadas de compensado naval. Eu, juntamente com meu irmão Dante, tivemos a oportunidade de, em 2004, ter uma dessas jangadas construída por ele. O Malemba II, a última e maior embarcação que construiu, tinha 16,5m x 6,5m e destinava-se ao transporte de turistas em passeios pelas praias do norte. Foi projetado para levar 150 passageiros, em dois andares.
O proprietário desta embarcação dizia que se por acaso não desse o resultado esperado com os passeios turísticos, o barco seria destinado ao transporte de cargas para a ilha de Fernando de Noronha. Fui informado que se encontra no norte, na praia de Galinhos, fazendo o que? Não sei.
Por muitos anos o estaleiro de Francisquinho funcionou na praia da Pipa, próximo a casa onde morava, na rua de cima. Com o tempo e a fama de bom construtor, aqui chegavam, de várias regiões, pessoas interessadas em contratar a construção de barcos no estaleiro do mestre. Essa fama perdurou enquanto esteve à frente da administração do seu estaleiro.
No início, a construção de um bote levava muitos dias, pois faltavam ferramentas e havia a dificuldade em conseguir a principal matéria prima: a madeira. As árvores eram retiradas das matas que ficavam a uma boa distância da praia. Dependendo da sua utilização elas podiam ser cortadas de maneira bastante rudimentar, e após isso, abertas em forma de pranchas ou moldadas em “cavernas”. Em seguida, este material era transportado em lombo de animais ou na cabeça dos homens.
O machado era utilizado para derrubar a árvore escolhida e depois dois homens operavam um grande serrote para abrir a madeira em pranchas, que mediam três polegadas de espessura. Levavam-se dias para transformar em pranchas uma árvore de bom porte. As “cavernas”, peças em forma de “U”, que juntamente com a quilha forma o esqueleto do bote, muitas vezes eram lavradas na própria mata. Quando transportadas para o estaleiro, já estavam no ponto de acabamento.
O processo era concluído com a ajuda de plainas e inchós. O trabalho era penoso. Conseguiam moldar peças enormes de madeira bruta em robustas “cavernas”, dando-lhes as formas necessárias utilizando apenas o machado e a inchó.
Para armar o bote era preciso primeiro situar a quilha. Depois a roda de proa, a espinha e em seguida a colocação do cavername. Após a colocação das “cavernas”, seguia o terço de proa e o terço de popa. O próximo passo era “envedubar” o barco, ou seja, dar a forma que vai ficar depois de pronto. Em seguida, vinha o "enlatamento”, operação que consiste em pregar barrotes, ligando as duas extremidades das “cavernas”, em preparação para o taboamento do convés.
Essa operação era realizada logo que aprontavam as escotilhas de porão. Somente na fixação das tábuas do convés é que utilizavam pregos.
Nas outras operações, como também no tabuamento dos costados, eram utilizadas cavilhas. Em seguida, eram feitas as bordas e os corrimãos de bordas. A última operação antes da pintura era o calafetamento, que é a vedação do barco. Para isso eram utilizadas estopas feitas com a casca da Sapucaia.
Procurei aqui, da melhor forma que me foi possível, descrever o que foi para o mestre Francisquinho, a paixão de toda sua vida: construir barcos. Para exercer tão nobre profissão, teve que passar por muitos desafios que lhe foram impostos durante o tempo em que pode manobrar com maestria, as ferramentas que lhe permitiam, usando somente a intuição e a vontade de vencer desafios. Ao longo de sua vida, o mestre produziu verdadeiras obras de arte, da nossa construção naval, de pequeno porte.
No último dia 22 de maio, descansou para sempre o mestre Francisquinho. Acometido de vários derrames, viveu os últimos anos recluso em seu sítio, nos arredores da Pipa. Tinha perdido a condição de falar e andava com muita dificuldade. Mas, quando encontrava os amigos, seus olhos miúdos brilhavam de satisfação e felicidade. Diziam o que sua voz, levada pela doença, já não lhe permitia dizer. Morreu o homem, o profissional, o mestre, o amigo, o religioso e o pai de família que soube criar os seus filhos com dignidade. Teve ainda, junto com sua esposa, espaço em seu coração para o sublime ato de amor ao próximo, a adoção. Descanse em paz, amigo.
Natal, 30 de maio de 2009.
Essa crônica faz parte do livro “A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS, a sua verdadeira história”. De autoria de Ormuz Barbalho Simonetti, tem publicação prevista para o ano de 2010.
Caro Primo,
ResponderExcluirFico feliz em vê-lo narrar de forma prosaica, as histórias da velha Pipa com muita genialidade e Inteligencia.
Um abraço.
Herculano Barbalho (Chicó)