quinta-feira, 9 de agosto de 2012

SE EU TIVESSE CONVIVIDO COM O MEU PAI


                                                         Odulio Botelho Medeiros

           
                             Se eu tivesse convivido com o meu pai, certamente eu seria mais feliz. A minha infância teria sido diferente, sem timidez, tristezas ou desencantos. Se eu tivesse convivido com o meu pai, os percalços teriam sido menores, pois o seu ombro fraterno teria me consolado. Se eu tivesse convivido com o meu pai, não teria os pesadelos que ainda hoje os tenho: dormiria um sono mais profundo e reparador.
                 
              Se eu tivesse convivido com o meu pai, o medo não existiria e uma fortaleza interior guardaria comigo até hoje. Se eu tivesse convivido com o meu pai, teria ouvido e recebido os seus conselhos, as suas lições, e a vida teria sido mais leve, mais benevolente, e, inegavelmente mais virtuosa.
                                
           Se eu tivesse convivido com o meu pai, teriam sido destruídas todas as fragilidades interiores e, com certeza, haveria de olhar para frente e sempre para o alto. Se eu tivesse convivido com o meu pai eu seria muito mais alegre, ameno e mais tolerante.

          Se eu tivesse convivido com o meu pai, enfrentaria as dúvidas que ainda restam e as desconfianças que ainda carrego. Se eu tivesse convivido com o meu pai, me revelaria mais humano e mais compreensivo. Se eu tivesse convivido com o meu pai, teria tido mais condições para entender os semelhantes e amá-los com maior profundidade.

          Se eu tivesse convivido com o meu pai, a minha gratidão seria mais reconhecida e eu poderia noticiar a todos o meu agradecimento. Se eu tivesse convivido com o meu pai, teria jogado mais peladas de futebol, teria cantado mais, e estudado muito mais e hoje falaria o idioma inglês e teria feito versos como o poeta Castro Alves.

             Se eu tivesse convivido com o meu pai, não teria trabalhado tanto, desde os dez anos de idade. Se eu tivesse convivido com o meu pai, acreditaria mais nas pessoas e não haveria desconfiança. Se eu tivesse convivido com o meu pai, possivelmente, assistiria novela de televisão e valorizaria mais as manifestações do povo e entenderia melhor a sua angústia.

          Se eu tivesse convivido com o meu pai, teria sido melhor filho, melhor pai, melhor avô, melhor marido, melhor irmão, melhor amigo e até melhor de coração. Se eu tivesse convivido com o meu pai, teria tido infindáveis palavras de agradecimento pelo dom da vida.

            Se eu tivesse convivido com meu pai, o levaria ao futebol nas tardes dos domingos, aos bares da vida, armaria para ele a melhor rede de dormir e ficaria a ouvir a sua voz e os seus lamentos. Se eu tivesse convivido com meu pai, o deixaria bem à vontade, contanto que ele ficasse de bem com a vida.

              Se eu tivesse convivido com o meu pai, não desperdiçaria o seu convívio, sairia sempre com ele para beber e até namorar. Se eu tivesse convivido com o meu pai, acreditaria mais na sorte, na vida, nas pessoas, no destino e muito mais em DEUS.
                                        
Parabéns ao meu amigo Odúlio Botelho Medeiros. Esse belo e comovente artigo é exatamente tudo que eu desejaria ter escrito.  

quinta-feira, 12 de julho de 2012

DE VOLTA PRA O ACONCHEGO - Última parte



DE VOLTA PRA O ACONCHEGO - II
           
            Seguiu a cavalgada/carreata estrada afora. No carro de som que fazia parte do cortejo, podíamos ouvir cantigas de vaquejada: “Minha mãe teve dois filhos, fruto de amor e paixão. Brincando crescemos jutos às margens do Riachão. O destino separou, ele foi ser um doutor e eu fiquei pra ser pinhão”. 

Carro de som acompanhou todo o percurso
Pouco antes de chegar à fazenda Lagoa do Cajá, aconteceu um pequeno acidente. Uma das cavalheiras foi atirada ao chão, quando sua montaria desequilibrou-se ao pisar em um buraco. Nada de grave, apenas um susto. Nessas cavalgadas, não raro acontece pequenos incidentes o que já é comum nesses eventos.
Fazenda Lagoa de Cajá - Serrinha RN
           
          Na fazenda Lagoa do Cajá, Marlene nos esperava para o almoço. O prato principal seria um “porco churrascado” acompanhado de uma “favada”. Já havia experimentado o feijão fava de diversas maneiras, porém jamais tinha comido uma fava com aquele sabor. 
Porco na brasa


Preparada à base de carne de charque, paio, lingüiça calabresa, bucho bovino, mocotó, muito tempero e a habilidade da cozinheira, logo transforma aquele rústico cereal, muito apreciado no sertão nordestino, em um verdadeiro manjar dos deuses.
Ana Maria serve a "favada dos deuses"
Favada à Lagoa do Cajá
           
          Em dado momento a tradição se fez presente com “Neguinho Aboiador”  tirado versos com os participantes, às vezes arrancava risos e aplausos. É bonito e sonoro ouvir o poeta-cantador, em preservação a uma das mais puras e autênticas manifestações culturais do nordeste do país. 
Neguinho Aboiador na fazenda Lagoa o Cajá
Neguinho Aboiador na fazenda Lagoa Nova 

O escritor José de Alencar, em seu livro O Sertanejo, diz do ritual do aboio. “Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro; nem ele as articula, pois fala do seu gado, com essa linguagem do coração que enternece os animais e os cativa”.
           
Fazenda Lagoa Nova a mais bonita e antiga da região 

         Por volta das 3 horas da tarde depois de muito forró, cachaça, porco churrascado e a inesquecível favada, partimos para a mais famosa e antiga das fazendas da região: a Fazenda Lagoa Nova. 
Lagoa da fazenda Lagoa Nova

Assim que atravessamos a porteira, logo me deparo com aquela paisagem já bem conhecida de outrora. A visão da lagoa que se debruça em frente à casa grande, cheia de marrecas, galinhas d’água, jaçanãs e mergulhões, nadando tranqüilos naquele espelho d’água que refletia as nuvens muito brancas, em contraste com o lindo azul turquesa de suas águas. Parei o carro por alguns instantes para melhor desfrutar daquela beleza singular.   

Galinhas d'água


Jaçanãs
           
Casa Grande da fazenda Lagoa Nova
Alpendre Casa Grande -  fazenda Lagoa Nova
    
     O casarão construído em taipa e com mais de 100 anos de existência, encontra-se em bom estado de conservação. Fomos recebidos por tia Julia, viúva de Paulo Barbalho que herdou de seu saudoso marido o dom de boa anfitriã. Até os dias de hoje nunca conheci um pessoa que se igualasse a Paulo Barbalho no trato amigo e acolhedor dos que tiveram a sorte de baterem á sua porta. A grande maioria dos seus correligionários são testemunha dessas suas qualidades, pois muito se beneficiaram de sua arte de bem receber, além da fiel amizade que sempre dedicou a todos, lamentavelmente, nem sempre foi correspondida.


Capela da fazenda Santa Terezinha - Serrinha RN


Fazenda Santa Terezinha 


           
         De Lagoa Nova a caravana dirigiu-se para a fazenda Santa Terezinha, cujo proprietário é outro primo, Honório Barbalho. Ao chegar já encontramos a fazenda com muitos convidados vindos de Goianinha. 
Queijo de manteiga - fazenda Sta Terezinha

O prato principal oferecido aos que chegavam era um delicioso queijo de manteiga, que acabara de sair do fogão à lenha. Pedi licença ao dono da casa para cumprimentar a queijeira.
Dona Délia - queigeira famosa na região

Dona Délia exímia na sua arte, desde pequena dedica-se a essa atividade aprendida com seus pais. Infelizmente não houve tempo para comer o que mais aprecio na confecção do queijo de manteiga: a raspa do taxo. A mistura feita com migalhas de queijo que ficam presas no fundo da panela, com farinha de mandioca e um pouco de manteiga da terra, também conhecida como manteiga de garrafa, por ter sua comercialização feita em garrafas, se constitui em uma das maravilhas da gastronomia sertaneja.
Faz. Sta Terezinha
                  
       
Faz  Sta. Terezinha 

Ormuz Simonetti na fazenda Sta. Terezinha


  A próxima e última parada foi na fazenda Jacumirim, de propriedade de Edinho, amigo e parceiro dos organizadores. Não compareci vencido pelo cansaço. Retornei para a fazenda Lagoa do Cajá onde iria pernoitar. 
Por do sol na fazenda Lagoa do Cajá

Aguardaria o retorno dos participantes, pois lá estava prevista a finalização do evento, com um forró pé de serra. A festança varou a noite com muita alegria, churrasco e a indispensável e boa cachaça.
Casal de galo de campina
           
    









Bem-ti-vi

Guriatã no facheiro

      Pela manhã acordei com o canto melodioso dos pássaros que saudava o milagre do amanhecer. Ao lado da casa, três grandes pés de algaroba servem de refugio aos pássaros que chegam para dormir. Bem-te-vis, sabiás, galos de campina, sanhaços, os saltitantes xorrós, majestosas rolinhas, golinhas e canários, exibem-se com seus gorjeios melódicos.  Até um casal de casaca-de-couro, pássaro que há anos não via, também marcou sua presença naquela benfazeja manhã. 
Tetéu

Voando alto e ligeiro, vez por outra, ouvia o canto dos verdes-linho, pássaros pequenos e ágeis da família dos periquitos, também conhecidos na região pelo prosaico nome de “tapacu”, que tem por hábito escolher o oco das árvores ou velhos cupinzeiros para nidificar. No pátio em frente à casa grande, o tetéu se exibia com vôos rasantes e seu canto estridente. 
Inhambu

Também podíamos ouvir, mesmo sem vê-los, o piado dos nhambus, ave muito arisca e com grande poder de mimetismo com o ambiente natural, proteção que lhe garante a difícil sobrevivência. A garoa caída durante a madrugada fez aquelas terras se revestirem de esperança e de vida, no eterno milagre do desabrochar da natureza. 
Marrecas viuvinha

Durante a madrugada tive ainda a oportunidade de ouvir o piado agudo das marrecas-viuvinhas, também conhecidas como irerês, que voando por cima da casa grande, se deslocava a procura de novas aguadas.
                       
         Do curral, situado ao lado da casa, chegava aos nossos ouvidos o mugido dolente do gado sendo separado para a ordenha feita ainda de maneira tradicional. O cheiro característico do curral misturado ao orvalho da manhã levou-me a recordas passagens de minha infância e adolescência vividas naquelas mesmas terras, onde hoje me encontrava. Todos nós guardamos alguns aromas em nossas mentes. Esses aromas, que fazem parte da nossa memória olfativa, são também chamados de Perfume da Memória. Há quem defenda a tese, de que nunca compramos um alimento ou artigo de perfumaria, sem antes sentir o seu cheiro.
Leite no curral



O bezerro atados a pé da vaca por um arreador - pequena peça de corda- esforça-se para alcançar suas tetas, enquanto o vaqueiro com movimentos ágeis e cadenciados retira delas o leite quentinho e cheiroso e de sabor inigualável. Tomamos alguns copos. Uma delícia! Infelizmente a grande maioria dos habitantes urbanos, jamais irão sentir o prazer de tomar um copo de leite ao pé da vaca.  
Carro de bois ornamenta a entrada da fazenda Lagos do Cajá
           
Juazeiro da minha infância na fazenda Lagoa do Espinho

 Felizes aqueles que têm a oportunidade de vivenciar momentos tão venturosos como esses, no dia em que, aceitando um convite, fiz uma nostálgica viagem, de volta ao meu aconchego.

Natal, junho 2012.  

sexta-feira, 6 de julho de 2012

DE VOLTA PRA O ACONCHEGO – Primeira Parte



         No início deste mês recebi um convite de minha prima Marlene Barbalho, que me deixou muito feliz. Estávamos em seu alpendre na Praia da Pipa quando ela me convocou para comemorar o dia de São João na sua fazenda. Da programação festiva, previamente organizada, constava a realização de uma cavalgada que iria obedecer aos moldes das antigas visitas que meus pais, tios e avós, realizavam quando passavam os meses de junho/julho nas suas respectivas fazendas, naquela região.
         Vários membros da família Barbalho/Simonetti, proprietários de terras em Goianinha que se dedicavam a atividade canavieira, escolheram a região do município de Santo Antônio do Salto da Onça, para a atividade pecuária, principalmente a criação de gado. O centro de todas essas propriedades era a Fazenda Lagoa Nova. Pertencia ao meu avô materno Odilon Barbalho, que ao falecer em 1962 deixou, para alguns de seus 11 filhos, uma parte dela. Outros herdaram propriedades menores, que ficavam em seu entorno.
                   Serra Caiada/RN


                                                                              Boa Saúde/RN
                    


  Aquela seria uma viagem de muitas recordações. Por isso mesmo, no dia anterior, passei boa parte da noite revivendo antigas relembranças da minha infância e adolescência, quando durante as férias escolares nos meses de junho, passava com meus primos e irmãos na Fazenda Lagoa do Espinho, de propriedade de meu pai, Arnaldo Simonetti, situada também nas proximidades da Fazenda Lagoa Nova.
         Pois bem, partimos de Natal, eu e minha esposa Geiza numa ensolarada manhã de domingo. Juntaram-se a nós, meu primo David Simonetti e esposa Olga, parceiro de muitas aventuras desde nossa infância nos anos 50 aqui em Natal, parte de nossa adolescência nos anos 70, no Rio de Janeiro, e novamente de volta pra nossas origens, aqui em Natal.
         Segui viagem em direção ao município de Serra Caiada, antigo roteiro que fazia quando acompanhava meu pai, nos fins de semana quando para lá nos deslocávamos num “possante” Jeep Willis, ano 1959. 
                                                  
        Chegamos a Boa Saúde, cidade que tem como padroeira Nossa Senhora da Boa Saúde, daí o seu nome. Lembrei-me que sempre fazíamos uma parada na mercearia do seu amigo Domicio. Lá ele se inteirava das novidades e encontrava outros amigos, moradores e fazendeiros na região. A demora “na pega” do inverno, o preço da arrouba de boi e a política eram os assuntos mais comentados naquela breve parada. Atravessávamos o Rio Trairi, na época ainda sem a ponte, construída na década de 70. Depois de outra parada obrigatória na fazenda Bom Pasto, onde moravam seus amigos, o casal Chicó e Dona Alice de Souza, chegávamos à fazenda Lagoa do Espinho, nosso destino.
                                                 Rio Trairi - RN                                                                                 


Durante o inverno, quando o Trairi descia com muita água, as famosas cheias, ficava intransponível para carros e animais. O único jeito para se atingir a outra margem e continuar a viagem era pelo “caixote”. Possidônio, antigo morador da cidade, improvisava uma caixa de madeira, que atada a cordas, presas nas duas margens sobre o rio, fazia o transporte de pessoas e mercadorias, no sistema tirolesa. As cordas eram fixadas em duas pedras nos pontos mais altos em ambos os lados do rio, e as pessoas e mercadorias eram despachadas de uma margem para outra, com relativa segurança.
                                             
      Do outro lado do rio, o vaqueiro Severino Pajeba, já nos esperava com cavalos selados para fazermos o restante do percurso. Eram tempos difíceis, porém, deixaram muitas saudades.
         Seguíamos em direção à fazenda Bom Pasto onde estava prevista a concentração dos participantes. A fazenda pertence ao meu sobrinho Arnaldo Simonetti, único filho de meu saudoso irmão Marcelo Simonetti, falecido prematuramente. Herdou do pai além da bondade, o gosto pelas coisas do campo, principalmente as vaquejadas.
                                                                Fazenda Bom Pasto           
       




Ao chegar na fazenda, encontramos o que já era esperado nesse tipo de eventos. Caminhões que transportavam cavalos de locais mais distantes, estacionados em baixo das árvores, misturavam-se a cavalos arreados e prontos para a partida, num frenético vai e vem de pessoas vestidas a caráter exibindo seus trajes compostos de botas, esporas, rebenque e chapéu de couro. Debaixo de um frondoso pé de umbu, outros participavam de animada conserva em torno de uma grande mesa e se fartavam de comidas típicas da região. Não obstante a existência de outras bebidas sobre a mesa, a preferência era pela velha e boa cachaça. O tira gosto convidava e estimulava o consumo da “marvada”, pois era á base de buchada, carneiro guisado e sarapatel, além de suculentos umbus-cajá e siriguela, colhidos ali pertinho.

                                                     Fazenda Bom Pasto

       Os carros, em sua maioria camionetas, também participaram conduzindo os que não tivessem montaria, ou mesmo que preferissem o conforto dos automóveis. Chamou-me a atenção, o fato de haver cavaleiros de ambos os sexos, e com idade variando entre sete e setenta anos, com a mesma alegria e disposição.
         Na hora marcada, por volta do meio dia, partiu a cavalgada/carreata em direção à fazenda Lagoa do Cajá, que outrora pertenceu a meu irmão Marcelo Simonetti, primeira parada da caravana. Outro fato não escapou às minhas observações, e que me deixou muito feliz: a participação democrática e entusiasta dos moradores da redondeza. Ali estavam reunidos vaqueiros com suas humildes montarias, junto com fazendeiros e visitantes que exibiam majestosos animais tratadas a “pão-de-ló”, num mesmo propósito: manter a tradição das visitas às propriedades de parentes e amigos num clima de festa e regozijo.  
 
       

                                                                     
     
Antecipei-me na partida, e fui fazer uma rápida visita a um antigo vaqueiro de meu pai, nascido e criado na nossa fazenda. Severino Pajeba, a quem já me referi, ainda mora na região, com sua esposa e alguns de seus filhos.
         




                      Fazenda Lagoa do Espinho - Serrinha/RN                     



 Para chegar até sua morada, precisei passar por dentro da fazenda Lagoa do Espinho, de tantas recordações. Cumprindo promessa feita a meu filho Thiago, que não a conheceu, tirei algumas fotografias da fazenda.  Fotografei a sede - casa grande, curral, armazém, casa do administrador e um pequeno aprisco - que ainda permanece sem nenhuma alteração, desde o tempo que foi vendida, logo após o falecimento de meu pai. Quando iniciava as fotos, lembrei-me de um verso do poema “Fazenda Santo Antonio”, onde Jorge de Altinho descreve cheio de saudades a fazenda de seu tio, que costumava freqüentar no tempo de menino.

“A tristeza me invade, quem já foi felicidade hoje é só recordação”.

... continua na próxima sexta feira.

sábado, 30 de junho de 2012

PRIMEIRAS FONTES D'ÁGUA - CACIMBAS

                                             Tela - acrílico e bico de pena - Levi Bulhões

Na Pipa daquela época, tanto a água para beber quanto para os gastos domésticos era retirada das chamadas “cacimbas”. Essas fontes nada mais eram que olhos d’água localizados próximo ao mar; afloravam da terra. As pessoas cavavam em círculos e ampliavam a área de captação da água. Como ficava exposta, e era comum ser utilizada por animais, a água destinada para beber tinha que ser retirada com cuidados especiais.   

Posteriormente, as cacimbas foram cavadas em locais previamente determinados, geralmente nos quintais das casas. Esse outro tipo de cacimba, mais moderno, constituía-se de um buraco escavado no chão, com largura variando entre 70cm e 1m. Era então revestida com tijolos até a borda, geralmente ficava acima do solo e era coberta com uma tampa de madeira. Como o lençol freático naquela área era muito superficial (e ainda hoje o é), ao perfurar de dois a três metros o solo, já se podia encontrar água abundante e de boa qualidade.

A água retirada das cacimbas era transportada em cabaças, potes ou galões para as casas. A primeira, lagenaria siceraria, tinha diversas utilidades ligadas ao uso da água. As cabaças tinham tamanhos e formas diversificados, dependendo da variedade e do momento da colheita. Servia para transportar água, roupas após a lavagem; como vasilha nas refeições, pratos, copos e cuias para retirar alimentos; como moringa, acondicionando água para os trabalhadores que iam para os roçados, pescadores, quando se aventuravam no mar adentro, e, principalmente, por viajantes, nos seus deslocamentos, geralmente feitos a pé, para Vila Flor, Goianinha, Ares, Barra de Cunhaú etc. Além disso, essas cabaças serviam também como instrumentos musicais.

Os potes e galões, por serem menores e bem mais maneiros, eram conduzidos na cabeça das mulheres, apoiados em uma rodilha, nome dado a um pano que depois de bem torcido é enrolado em círculo. A rodilha tem a função de evitar o incômodo contato direto do fundo do pote com a cabeça de quem o transporta, além de melhorar o equilíbrio do mesmo. Tornou-se comum em nossa região o ditado: “Quem não pode com o pote, não pega na rodilha”. Isso significa dizer que o indivíduo que não pode assumir determinado compromisso ou realizar alguma tarefa não deve se comprometer, pois, com os mesmos.

O galão, ainda hoje muito utilizado para transportar água nas cidades do interior do Nordeste, era feito com duas latas de 20 litros cada. Essas latas chegavam à praia trazidas pelos comerciantes que vendiam o querosene. Ainda hoje, lembro-me da única logomarca, Esso Jacaré. Este produto era utilizado para a iluminação das casas, abastecendo lamparinas, candeeiros e lampiões. Tempos depois, utilizou-se o óleo diesel, popularmente chamado de “gás óleo”.

As latas eram presas por cordas de agave (sisal) a um barrote de madeira. O transportador o carregava depois de bem dividir em seu ombro os quarenta litros de água que comportava o galão. Essa água era colocada em jarras de barro que ficavam localizadas nas cozinhas, para o preparo dos alimentos, lavagem de pratos etc.

A água destinada ao consumo dos moradores era colocada em potes e quartinhas, e estas, por serem menores, eram geralmente colocadas nas janelas para que, em contato com o vento, esfriassem a água armazenada nelas.

Os utensílios de barro, como jarras, potes, quartinhas, pratos e panelas, eram todos adquiridos nas feiras de Vila Flor, Canguaretama e Goianinha. Essas peças eram feitas de um tipo de barro especial, denominado “barro de louça”, que não existia nas regiões próximas ao mar.

Antes de a água ser colocada nas jarras, amarrava-se na “boca” das mesmas um pano muito fino, geralmente feito de morim. Esse pano ou coador, como também era conhecido, servia para evitar a entrada de pequenas raízes de árvores próximas das cacimbas, assim como também algumas impurezas que o tal pano conseguisse reter. Colocavam-se, dentro delas, algumas pedras de enxofre para evitar o aparecimento de “martelos”, como regionalmente conhecemos as larvas de mosquitos.
               Jarras de cerâmica e seus guardiões - Faz. Lagoa Nova


Foram essas jarras nossas primeiras geladeiras. No “pé” da jarra, eram depositadas: frutas, verduras e raízes que eram consumidas durante a semana. Devido à umidade existente nesses locais, os alimentos se conservavam saudáveis por mais tempo, não obstante à companhia de algum teimoso sapo cururu. Esse indesejável inquilino que, sem qualquer cerimônia, instalava-se ali, junto aos alimentos, para aproveitar aquele friozinho durante o dia. À noite, aventurava-se em volta de lampiões, candeeiros e lamparinas, à cata de algumas desprevenidas mariposas.

As mais famosas cacimbas da Praia da Pipa eram a Cacimba do Comum, localizada ao lado da atual igreja onde hoje é a casa que pertenceu a Maria Gadelha, e a Cacimba de Zé de Tereza, onde hoje é o restaurante Peixada da Pipa e a Cacimba de Vicência Torres, onde fica a casa de Honório Grilo. Outra cacimba famosa era a Cacimba do Beco da Peixeira, considerada “assombrada”. Esse beco era uma passagem que existia próximo à casa que hoje pertence a Luiz Carvalho. Estórias passadas de pai para filho diziam que as pessoas evitavam passar à noite nesse beco, pois ouviam saindo da tal cacimba o som de músicas ou de pessoas cantando.

Com a chegada da água encanada, em abril de 1983, as cacimbas foram aos poucos sendo desativadas. Algumas, depois de anos fornecendo de suas entranhas água doce e saudável, tiveram destino menos nobre, mas de extrema importância – foram transformadas em fossas sépticas, e continuaram servindo à saúde da comunidade.