O Tráfego fluia normalmente.
Os veículos desfilam imponentes. A paisagem se descortina generosa. Os
mundos se dividem nos limites dos vidros que abrem e fecham automaticamente ao
leve toque dos motoristas. Lá fora um calor escaldante exaure as pessoas. Ali
dentro uma amena temperatura aconchega o ambiente.
O sinal fecha. Rangidos de freios ecoam no
ar. Como surgidos do nada, um pequeno exército de pessoas muda a paisagem. São
vendedores ambulantes, mendigos, aleijados arrastando-se no asfalto, crianças
famintas que mal balbuciam um pedido ininteligível de uma moeda, velhos e suas
mãos tremulando no vazio, malabaristas e acrobatas que disputam a atenção e
alguns trocados dos motoristas e passageiros.
Os dois mundos se encontram. Perplexidade e
indiferença são sentimentos conflitantes e a ação, um ato constrito. O
“levantar” dos vidros dos luxuosos carros substituem os limites da humanidade.
Os olhos cravados no semáforo inibem, propositalmente, o contraste do momento.
O sinal abre. Tudo se movimenta e os mundos
voltam a se separar. Pelo retrovisor, o olhar faminto da criança parece
distante. Apenas parece, pois, num passe de mágica, no próximo sinal, a cena se
repete. Como poderia aquela criança está aqui novamente. Não, ela não está! É
outra criança. São outras crianças espalhadas por todos os semáforos das ricas
avenidas da cidade. A pobreza não tem várias faces, semblantes diferentes.
Todas parecem miseráveis, sujas, abandonadas, iguais. Todas são iguais em suas
carências, em sua ânsia desesperada de misericórdia, em seus mudos lamentos.
O sinal abre. E reabre. E, em cada um deles,
todos os dias, as muitas cenas urbanas se repetem no contraste das
desigualdades.
O tempo passa. Sinais abrem e fecham sem
parar. As distâncias entre os mudos: pobre e rico, aumentam sem parar.
Certo dia, em um dos muitos semáforos do seu
caminho habitual, aquele indiferente motorista se depara com uma pequena
aglomeração em torno de um cadáver postado na pista. A polícia algemara um
jovem, quase criança. O motorista olhou com um pouco mais de atenção e
deparou-se com um rosto conhecido. Indignado pensou:
- Meus Deus, era um daqueles garotos que
mendigavam no semáforo da avenida Roberto Freire, há tão pouco tempo. Nunca
mais o tinha visto. Que marginal, como pode a maldade humana chegar a esse
ponto. Acabar com a vida de alguém sem qualquer motivo. Ainda bem que eu nunca
me dispus a ajudar a nenhum deles.
O corpo jazia inerte.
Logo aquela vida seria apenas um desenho no
asfalto.
Para aquele jovem, preso e algemado, a vida
sempre fora um desenho, um mal acabado esboço colorido com as frustrantes
tintas dos descasos e desmandos do poder constituído e da indiferença social.
No meio da pequena multidão, alguém mais exaltado, falava de dignidade humana.
Imagine, alguém, repentinamente, lembrar da
dignidade humana como se ela fosse apenas uma palavra. E como falamos em dignidade humana. Mas, o
que é dignidade humana?
(Cena Urbana,
texto de autoria de Adauto José de Carvalho Filho, Auditor Fiscal da Receita
Federal do Brasil Aposentado, Bacharel em Direito, escritor e poeta)