quinta-feira, 12 de julho de 2012

DE VOLTA PRA O ACONCHEGO - Última parte



DE VOLTA PRA O ACONCHEGO - II
           
            Seguiu a cavalgada/carreata estrada afora. No carro de som que fazia parte do cortejo, podíamos ouvir cantigas de vaquejada: “Minha mãe teve dois filhos, fruto de amor e paixão. Brincando crescemos jutos às margens do Riachão. O destino separou, ele foi ser um doutor e eu fiquei pra ser pinhão”. 

Carro de som acompanhou todo o percurso
Pouco antes de chegar à fazenda Lagoa do Cajá, aconteceu um pequeno acidente. Uma das cavalheiras foi atirada ao chão, quando sua montaria desequilibrou-se ao pisar em um buraco. Nada de grave, apenas um susto. Nessas cavalgadas, não raro acontece pequenos incidentes o que já é comum nesses eventos.
Fazenda Lagoa de Cajá - Serrinha RN
           
          Na fazenda Lagoa do Cajá, Marlene nos esperava para o almoço. O prato principal seria um “porco churrascado” acompanhado de uma “favada”. Já havia experimentado o feijão fava de diversas maneiras, porém jamais tinha comido uma fava com aquele sabor. 
Porco na brasa


Preparada à base de carne de charque, paio, lingüiça calabresa, bucho bovino, mocotó, muito tempero e a habilidade da cozinheira, logo transforma aquele rústico cereal, muito apreciado no sertão nordestino, em um verdadeiro manjar dos deuses.
Ana Maria serve a "favada dos deuses"
Favada à Lagoa do Cajá
           
          Em dado momento a tradição se fez presente com “Neguinho Aboiador”  tirado versos com os participantes, às vezes arrancava risos e aplausos. É bonito e sonoro ouvir o poeta-cantador, em preservação a uma das mais puras e autênticas manifestações culturais do nordeste do país. 
Neguinho Aboiador na fazenda Lagoa o Cajá
Neguinho Aboiador na fazenda Lagoa Nova 

O escritor José de Alencar, em seu livro O Sertanejo, diz do ritual do aboio. “Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro; nem ele as articula, pois fala do seu gado, com essa linguagem do coração que enternece os animais e os cativa”.
           
Fazenda Lagoa Nova a mais bonita e antiga da região 

         Por volta das 3 horas da tarde depois de muito forró, cachaça, porco churrascado e a inesquecível favada, partimos para a mais famosa e antiga das fazendas da região: a Fazenda Lagoa Nova. 
Lagoa da fazenda Lagoa Nova

Assim que atravessamos a porteira, logo me deparo com aquela paisagem já bem conhecida de outrora. A visão da lagoa que se debruça em frente à casa grande, cheia de marrecas, galinhas d’água, jaçanãs e mergulhões, nadando tranqüilos naquele espelho d’água que refletia as nuvens muito brancas, em contraste com o lindo azul turquesa de suas águas. Parei o carro por alguns instantes para melhor desfrutar daquela beleza singular.   

Galinhas d'água


Jaçanãs
           
Casa Grande da fazenda Lagoa Nova
Alpendre Casa Grande -  fazenda Lagoa Nova
    
     O casarão construído em taipa e com mais de 100 anos de existência, encontra-se em bom estado de conservação. Fomos recebidos por tia Julia, viúva de Paulo Barbalho que herdou de seu saudoso marido o dom de boa anfitriã. Até os dias de hoje nunca conheci um pessoa que se igualasse a Paulo Barbalho no trato amigo e acolhedor dos que tiveram a sorte de baterem á sua porta. A grande maioria dos seus correligionários são testemunha dessas suas qualidades, pois muito se beneficiaram de sua arte de bem receber, além da fiel amizade que sempre dedicou a todos, lamentavelmente, nem sempre foi correspondida.


Capela da fazenda Santa Terezinha - Serrinha RN


Fazenda Santa Terezinha 


           
         De Lagoa Nova a caravana dirigiu-se para a fazenda Santa Terezinha, cujo proprietário é outro primo, Honório Barbalho. Ao chegar já encontramos a fazenda com muitos convidados vindos de Goianinha. 
Queijo de manteiga - fazenda Sta Terezinha

O prato principal oferecido aos que chegavam era um delicioso queijo de manteiga, que acabara de sair do fogão à lenha. Pedi licença ao dono da casa para cumprimentar a queijeira.
Dona Délia - queigeira famosa na região

Dona Délia exímia na sua arte, desde pequena dedica-se a essa atividade aprendida com seus pais. Infelizmente não houve tempo para comer o que mais aprecio na confecção do queijo de manteiga: a raspa do taxo. A mistura feita com migalhas de queijo que ficam presas no fundo da panela, com farinha de mandioca e um pouco de manteiga da terra, também conhecida como manteiga de garrafa, por ter sua comercialização feita em garrafas, se constitui em uma das maravilhas da gastronomia sertaneja.
Faz. Sta Terezinha
                  
       
Faz  Sta. Terezinha 

Ormuz Simonetti na fazenda Sta. Terezinha


  A próxima e última parada foi na fazenda Jacumirim, de propriedade de Edinho, amigo e parceiro dos organizadores. Não compareci vencido pelo cansaço. Retornei para a fazenda Lagoa do Cajá onde iria pernoitar. 
Por do sol na fazenda Lagoa do Cajá

Aguardaria o retorno dos participantes, pois lá estava prevista a finalização do evento, com um forró pé de serra. A festança varou a noite com muita alegria, churrasco e a indispensável e boa cachaça.
Casal de galo de campina
           
    









Bem-ti-vi

Guriatã no facheiro

      Pela manhã acordei com o canto melodioso dos pássaros que saudava o milagre do amanhecer. Ao lado da casa, três grandes pés de algaroba servem de refugio aos pássaros que chegam para dormir. Bem-te-vis, sabiás, galos de campina, sanhaços, os saltitantes xorrós, majestosas rolinhas, golinhas e canários, exibem-se com seus gorjeios melódicos.  Até um casal de casaca-de-couro, pássaro que há anos não via, também marcou sua presença naquela benfazeja manhã. 
Tetéu

Voando alto e ligeiro, vez por outra, ouvia o canto dos verdes-linho, pássaros pequenos e ágeis da família dos periquitos, também conhecidos na região pelo prosaico nome de “tapacu”, que tem por hábito escolher o oco das árvores ou velhos cupinzeiros para nidificar. No pátio em frente à casa grande, o tetéu se exibia com vôos rasantes e seu canto estridente. 
Inhambu

Também podíamos ouvir, mesmo sem vê-los, o piado dos nhambus, ave muito arisca e com grande poder de mimetismo com o ambiente natural, proteção que lhe garante a difícil sobrevivência. A garoa caída durante a madrugada fez aquelas terras se revestirem de esperança e de vida, no eterno milagre do desabrochar da natureza. 
Marrecas viuvinha

Durante a madrugada tive ainda a oportunidade de ouvir o piado agudo das marrecas-viuvinhas, também conhecidas como irerês, que voando por cima da casa grande, se deslocava a procura de novas aguadas.
                       
         Do curral, situado ao lado da casa, chegava aos nossos ouvidos o mugido dolente do gado sendo separado para a ordenha feita ainda de maneira tradicional. O cheiro característico do curral misturado ao orvalho da manhã levou-me a recordas passagens de minha infância e adolescência vividas naquelas mesmas terras, onde hoje me encontrava. Todos nós guardamos alguns aromas em nossas mentes. Esses aromas, que fazem parte da nossa memória olfativa, são também chamados de Perfume da Memória. Há quem defenda a tese, de que nunca compramos um alimento ou artigo de perfumaria, sem antes sentir o seu cheiro.
Leite no curral



O bezerro atados a pé da vaca por um arreador - pequena peça de corda- esforça-se para alcançar suas tetas, enquanto o vaqueiro com movimentos ágeis e cadenciados retira delas o leite quentinho e cheiroso e de sabor inigualável. Tomamos alguns copos. Uma delícia! Infelizmente a grande maioria dos habitantes urbanos, jamais irão sentir o prazer de tomar um copo de leite ao pé da vaca.  
Carro de bois ornamenta a entrada da fazenda Lagos do Cajá
           
Juazeiro da minha infância na fazenda Lagoa do Espinho

 Felizes aqueles que têm a oportunidade de vivenciar momentos tão venturosos como esses, no dia em que, aceitando um convite, fiz uma nostálgica viagem, de volta ao meu aconchego.

Natal, junho 2012.  

sexta-feira, 6 de julho de 2012

DE VOLTA PRA O ACONCHEGO – Primeira Parte



         No início deste mês recebi um convite de minha prima Marlene Barbalho, que me deixou muito feliz. Estávamos em seu alpendre na Praia da Pipa quando ela me convocou para comemorar o dia de São João na sua fazenda. Da programação festiva, previamente organizada, constava a realização de uma cavalgada que iria obedecer aos moldes das antigas visitas que meus pais, tios e avós, realizavam quando passavam os meses de junho/julho nas suas respectivas fazendas, naquela região.
         Vários membros da família Barbalho/Simonetti, proprietários de terras em Goianinha que se dedicavam a atividade canavieira, escolheram a região do município de Santo Antônio do Salto da Onça, para a atividade pecuária, principalmente a criação de gado. O centro de todas essas propriedades era a Fazenda Lagoa Nova. Pertencia ao meu avô materno Odilon Barbalho, que ao falecer em 1962 deixou, para alguns de seus 11 filhos, uma parte dela. Outros herdaram propriedades menores, que ficavam em seu entorno.
                   Serra Caiada/RN


                                                                              Boa Saúde/RN
                    


  Aquela seria uma viagem de muitas recordações. Por isso mesmo, no dia anterior, passei boa parte da noite revivendo antigas relembranças da minha infância e adolescência, quando durante as férias escolares nos meses de junho, passava com meus primos e irmãos na Fazenda Lagoa do Espinho, de propriedade de meu pai, Arnaldo Simonetti, situada também nas proximidades da Fazenda Lagoa Nova.
         Pois bem, partimos de Natal, eu e minha esposa Geiza numa ensolarada manhã de domingo. Juntaram-se a nós, meu primo David Simonetti e esposa Olga, parceiro de muitas aventuras desde nossa infância nos anos 50 aqui em Natal, parte de nossa adolescência nos anos 70, no Rio de Janeiro, e novamente de volta pra nossas origens, aqui em Natal.
         Segui viagem em direção ao município de Serra Caiada, antigo roteiro que fazia quando acompanhava meu pai, nos fins de semana quando para lá nos deslocávamos num “possante” Jeep Willis, ano 1959. 
                                                  
        Chegamos a Boa Saúde, cidade que tem como padroeira Nossa Senhora da Boa Saúde, daí o seu nome. Lembrei-me que sempre fazíamos uma parada na mercearia do seu amigo Domicio. Lá ele se inteirava das novidades e encontrava outros amigos, moradores e fazendeiros na região. A demora “na pega” do inverno, o preço da arrouba de boi e a política eram os assuntos mais comentados naquela breve parada. Atravessávamos o Rio Trairi, na época ainda sem a ponte, construída na década de 70. Depois de outra parada obrigatória na fazenda Bom Pasto, onde moravam seus amigos, o casal Chicó e Dona Alice de Souza, chegávamos à fazenda Lagoa do Espinho, nosso destino.
                                                 Rio Trairi - RN                                                                                 


Durante o inverno, quando o Trairi descia com muita água, as famosas cheias, ficava intransponível para carros e animais. O único jeito para se atingir a outra margem e continuar a viagem era pelo “caixote”. Possidônio, antigo morador da cidade, improvisava uma caixa de madeira, que atada a cordas, presas nas duas margens sobre o rio, fazia o transporte de pessoas e mercadorias, no sistema tirolesa. As cordas eram fixadas em duas pedras nos pontos mais altos em ambos os lados do rio, e as pessoas e mercadorias eram despachadas de uma margem para outra, com relativa segurança.
                                             
      Do outro lado do rio, o vaqueiro Severino Pajeba, já nos esperava com cavalos selados para fazermos o restante do percurso. Eram tempos difíceis, porém, deixaram muitas saudades.
         Seguíamos em direção à fazenda Bom Pasto onde estava prevista a concentração dos participantes. A fazenda pertence ao meu sobrinho Arnaldo Simonetti, único filho de meu saudoso irmão Marcelo Simonetti, falecido prematuramente. Herdou do pai além da bondade, o gosto pelas coisas do campo, principalmente as vaquejadas.
                                                                Fazenda Bom Pasto           
       




Ao chegar na fazenda, encontramos o que já era esperado nesse tipo de eventos. Caminhões que transportavam cavalos de locais mais distantes, estacionados em baixo das árvores, misturavam-se a cavalos arreados e prontos para a partida, num frenético vai e vem de pessoas vestidas a caráter exibindo seus trajes compostos de botas, esporas, rebenque e chapéu de couro. Debaixo de um frondoso pé de umbu, outros participavam de animada conserva em torno de uma grande mesa e se fartavam de comidas típicas da região. Não obstante a existência de outras bebidas sobre a mesa, a preferência era pela velha e boa cachaça. O tira gosto convidava e estimulava o consumo da “marvada”, pois era á base de buchada, carneiro guisado e sarapatel, além de suculentos umbus-cajá e siriguela, colhidos ali pertinho.

                                                     Fazenda Bom Pasto

       Os carros, em sua maioria camionetas, também participaram conduzindo os que não tivessem montaria, ou mesmo que preferissem o conforto dos automóveis. Chamou-me a atenção, o fato de haver cavaleiros de ambos os sexos, e com idade variando entre sete e setenta anos, com a mesma alegria e disposição.
         Na hora marcada, por volta do meio dia, partiu a cavalgada/carreata em direção à fazenda Lagoa do Cajá, que outrora pertenceu a meu irmão Marcelo Simonetti, primeira parada da caravana. Outro fato não escapou às minhas observações, e que me deixou muito feliz: a participação democrática e entusiasta dos moradores da redondeza. Ali estavam reunidos vaqueiros com suas humildes montarias, junto com fazendeiros e visitantes que exibiam majestosos animais tratadas a “pão-de-ló”, num mesmo propósito: manter a tradição das visitas às propriedades de parentes e amigos num clima de festa e regozijo.  
 
       

                                                                     
     
Antecipei-me na partida, e fui fazer uma rápida visita a um antigo vaqueiro de meu pai, nascido e criado na nossa fazenda. Severino Pajeba, a quem já me referi, ainda mora na região, com sua esposa e alguns de seus filhos.
         




                      Fazenda Lagoa do Espinho - Serrinha/RN                     



 Para chegar até sua morada, precisei passar por dentro da fazenda Lagoa do Espinho, de tantas recordações. Cumprindo promessa feita a meu filho Thiago, que não a conheceu, tirei algumas fotografias da fazenda.  Fotografei a sede - casa grande, curral, armazém, casa do administrador e um pequeno aprisco - que ainda permanece sem nenhuma alteração, desde o tempo que foi vendida, logo após o falecimento de meu pai. Quando iniciava as fotos, lembrei-me de um verso do poema “Fazenda Santo Antonio”, onde Jorge de Altinho descreve cheio de saudades a fazenda de seu tio, que costumava freqüentar no tempo de menino.

“A tristeza me invade, quem já foi felicidade hoje é só recordação”.

... continua na próxima sexta feira.