quarta-feira, 19 de novembro de 2008
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
JOSÉ DINIZ GRILO DE MELO
Cena Urbana
Colunista: Vicente Serejo
DINIZ GRILO
Fomos vizinhos esses anos todos. Ele vivendo os verões desde os tempos de menino no mesmo casarão, diante do mar, onde morou nos últimos vinte anos. Vivia sozinho, cercado de quadros, com um quintal sombreado de bananeiras e coqueiros e seus dois cachorros. No verão do ano passado, pintou a casa em cores fortes e formas retas como as casas da Boca, de Buenos Aires. E como suas cores que ardiam - vermelhos, amarelos e azuis. Como se fossem quadros. Nossa casa da Redinha, parede-e-meia com a dele, tem vários quadros seus. Dois duplos, um deles com o desfile dos 'Cão', e que recebeu o primeiro prêmio da Bienal Naïf, de São Paulo. Ele mesmo gostava de se deixar fotografar e filmar ao lado do quadro e sempre dizia, como declarou num documentário de tevê do seu site, que os 'Cão' da Redinha abriram as portas não só de São Paulo, como fora do Brasil, pela singularidade plástica de suas figuras. Sonhava com a vida saudável, de caminhadas na beira do mar nas manhãs calmas da Redinha, mas era mesmo um grande notívago. Nas madrugadas havia sempre uma luz acesa na sala dos fundos, onde vivia a maior parte das horas, a partir do meio-dia. Mas, na sua solidão, não abria mão do telefone e, nos últimos anos, do computador. Sua página no orkut tem 13 mil recados, fotos, músicas e imagens em movimento. Gostava de ter a tecnologia à sua disposição. Nos últimos meses, e depois de vender muitos quadros com bois-de-reis retratados nos desenhos coloridos e miúdos das chitas, resolveu inovar. E passou a concebê-los em traços e linhas retas, numa espécie de cubismo diluído nas formas do boi. Pensava em fazer uma grande exposição aqui e, depois, fora de Natal. E trabalhava ouvindo músicas, algumas vezes velhos e tristes boleros contando histórias de amor; e ainda Nana, Caetano, Caymmi, Chico Buarque. Tinha um olho pregado nas loucuras do mundo e com ele filtrava toda sua criatividade de artista. Lembro do dia em que chegou no alpendre e convidou para conhecer um novo trabalho. Os oratórios profanos que estava montando. Reunia em caixas em forma de velhos e piedosos oratórios de rezas antigas, o sagrado e o profano. Imagens de santos e de ex-votos, mulheres nuas e homens pagãos, como se tivesse criando uma humanidade mais verdadeira. Gostou de viver uns tempos em Paris e viajar por alguns países europeus; e também de uma temporada nos Estados Unidos. Gostava de viagens longas, de alguns meses, como se os seus olhos exigissem dele demoradas contemplações. Tinha uma vida espartana, despojada de todos os luxos, a não ser o luxo indispensável de ser artista e de ter na arte sua única chance de ser feliz. Comia pouco, gostava de café e de cigarro, e alguns dias tinha o gosto de conversar. Quando não existia a ponte e no inverno a Redinha ficava apenas com seu povo humilde, morador de suas ruas e becos, ficava surpreso quando chegava com Rejane para o fim de semana. Ouvia o barulho do carro entrando na garagem e logo aparecia, aceitava um café e puxava conversa. Mas, se por acaso estava sem sair há dias, perguntava com um sorriso fugindo pelo canto da boca como quem não esperava ouvir novidades: 'Notícias da Capital?'. Ah, ninguém ocupará aquela casa. Na plenitude de um homem tão sozinho e tão cheio de hóspedes, no silêncio surdo de cada quadro, de cada escultura. Como se a assombração de uns e a sublimidade de outros construíssem um mundo estranho e belo. Invenção de um artista que, vivendo na praia, não gostava do verão. Por isso, todos os anos, esperava a quarta-feira de cinzas chegar. Só para viver a doce melancolia de um mar sozinho. Sem nada. Sem ninguém.